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Crítica (MOTELX 2017): "Lowlife", de Ryan Prows



Primeiríssima longa-metragem do americano Ryan Prows, "Lowlife" é uma das descobertas do festival. Um thriller negríssimo, com pronunciados contornos de uma comédia satírica, densamente enraizada num olhar desencantado e melancólico sobre a sociedade moderna, que se divide em pequenas vinhetas mais ou menos rocambolescas, onde conhecemos um grupo de personagens caricatas, pertencentes a círculos, digamos assim, que só vemos no cinema americano muito esporadicamente. Afinal, todos os acontecimentos giram à volta de uma comunidade trabalhadora, maioritariamente constituída por imigrantes mexicanos e afro-americanos, descontentes com as suas vidas e, afetados por uma série de problemas distintos, que vão desde toxicodependência ao racismo, que necessitam de enfrentar quase diariamente, passando por uma desagregação progressiva dos laços familiares (aliás, uma temática absolutamente central no filme de Prows). E, nesse sentido, é louvável a maneira como o cineasta retrata estas personagens, sem nunca fazer julgamentos, permitindo-lhes apenas que sejam honestas para consigo mesmas, no processo, transformando-as em seres humanos, que transcendem as bases caricaturais, que originalmente surgem na mente dos espetadores (por exemplo, veja-se a forma como vamos percebendo a odisseia e o carater de um ex-presidiário com uma suástica tatuada na cara, à medida que os tempos passados na cadeia e a sua lealdade canina ao melhor amigo, se vão tornando determinantes). E são precisamente essas preocupações admiráveis, em retratar de forma correta e respeitosa os segmentos da população americana, que a cinematografia local esquece sempre que pode, que elevam "Lowlife" acima das suas limitações (só sentimos mesmo que o todo ganha a propulsão desejada, na segunda metade). Isso e, um trabalho uniformemente excelente do seu elenco e, um argumento pouco comum, que funciona tanto como uma subversão mais ou menos cómica dos códigos ancestrais do policial americano (aqui, os heróis assumem os corpos dos falhados e rejeitados, que normalmente apenas preenchem os planos), como também como um contundente filme de confronto, de um realizador com um mundo, que manifestamente encara como decadente nos seus valores e políticas. Ambições altíssimas para um estreante, que acabam por resultar num filme imperfeito, mas muito interessante, que anuncia Prows enquanto um nome a ter em conta.

Realização: Ryan Prows
Género: Thriller, Drama, Comédia
Duração: 96 minutos

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