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Crítica: "Arranha-Céus" ("High-Rise"), de Ben Wheatley



Wheatley já filmou os traumas da guerra, o nascimento de um amor comovente entre dois assassinos em série e um hilariante tiroteio num armazém. Agora, o mais ousado cineasta britânico contemporâneo, virou-se para a literatura de J.G. Ballard, para retratar a falência ou, melhor o colapso completo e absoluto de uma sociedade capitalista. E, quem conhecer o cinema muito particular do autor de “Kill List” e “Free Fire”, certamente saberá que ele nunca demonstrou grande interesse em construir objetos cinematográficos “confortáveis” ou, politicamente corretos. Não, Wheatley apenas ambiciona alimentar um interesse, que nos dias que correm parece mesmo ser só seu, ver o mundo a arder. Ideal, nunca antes tão aparente como em “Arranha-Céus”, que começa por nos apresentar ao edifício, onde tudo se passa, estabelecendo uma atmosfera de permanente estranheza, reminiscente de alguns títulos de Terry Gilliam (como o recentemente reposto “Brazil: O Outro Lado do Sonho”), só para depois nos atirar para um festim caleidoscópico de violência extrema e perversão sexual. O resultado não é aconselhável para estômagos fracos, nem apoiantes de Margaret Thatcher, mas resume lindamente as obsessões do seu autor, nomeadamente, alguém que procura constantemente cruzar narrativas emocional e intelectualmente complexas, onde abundam elementos metafóricos e imensos detalhes subtis, com um gosto quase charmoso pelo grotesco. Tudo isto, embalado num sentido estético apuradíssimo, que contribui para tornar esta experiência alucinatória, em algo inesquecível. Por aqui, a destruição faz o seu caminho e, nós simultaneamente deleitados e chocados, permanecemos ali sentadinhos e quietos, com um sorriso pecaminoso na cara, à medida que tudo se torna mais melancólico e desencantado, ainda que sempre num contexto diabolicamente humorístico (Hiddleston esmaga um crânio, na sequência de uma disputa por uma lata de tinta, num dos momentos mais assumidamente cómicos da fita, o que bastará para que os indecisos decidam ou não se esta é uma proposta a aceitar). E, como não amar desmesuradamente, uma comédia tão doentia, que até integra na narrativa uma piada deveras engenhosa a envolver um discurso de Thatcher?


Realização: Ben Wheatley
Argumento: Amy Jump
Género: Drama, Comédia

Duração: 119 minutos

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