Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "FILHOS DE RAMSÉS"

Vimo-lo em "O Profeta", de Jacques Audiard, "O Mundo É Teu", de Romain Gavras, "Marselha Debaixo de Fogo", de Cédric Jimenez, "Recreio", de Laura Wandel... Então, porque é que ainda não reconhecemos o nome de Karim Leklou? Quem sabe? Talvez, em 2024, não tenhamos de continuar a perguntar, uma vez que, tudo indica que o vamos poder encontrar uma e outra vez ao longo dos próximos meses (atualmente, em França, Leklou tem três longas-metragens em cartaz). O primeiro "embate" dá-se com "Filhos de Ramsés", de Clément Cogitore, autor do muito promissor "Ni Le Ciel Ni La Terre" (exibido no LEFFEST - Lisbon & Sintra Film Festival de 2020).

O mínimo que se pode dizer é que nos encontramos mesmo perante uma experiência atordoante, reminiscente do cinema de Josh e Benny Safdie, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti e nos cineastas do novo realismo italiano que filmaram (obsessivamente até) a Roma em mudança.

O cenário é La Goutte D'or, um bairro parisiense, que se foi modificando com várias camadas de imigração, maioritariamente africana, ao longo dos anos. Entre os seus habitantes, encontramos Ramsés (Leklou), um "vidente" que construiu um pequeno império à custa das suas vigarices. Aliás, a certo ponto, ficamos mesmo a saber que os truques engenhosos de Ramsés lhe providenciaram um estatuto de popularidade tão alto, que os restantes médiuns da Goutte D'or começaram a encará-lo como uma ameaça (até o convocam para uma espécie de "Concílio de Charlatões", num momento que equilibra sátira e retrato social com uma elegância que surpreende).

No entanto, o seu quotidiano "aparentemente" (e só "aparentemente") corriqueiro, complica-se quando é atraído (nunca saberemos porquê) para um descampado em obras, onde depara com o cadáver de um menino, que ele reconhece de um gangue de adolescentes que anda a aterrorizar os habitantes (e negociantes) da Goutte D'or.

Cogitore é um narrador elíptico, que nunca sente a necessidade de nos dar demasiada informação, nesse sentido, "Filhos de Ramsés"  assume uma abordagem dúplice tremendamente invulgar. Por um lado, trata-se de um mergulho profundo numa realidade muito específica, expondo o funcionamento daquele lugar (as suas hierarquias e códigos) com clareza, no processo, providenciando ao espetador casual, que pouco ou nada saberá acerca do quotidiano dos habitantes da Goutte D'or, uma fascinante porta de entrada para esse universo. Por outro, os mecanismos narrativos empregues por Cogitore (não falamos apenas no desenvolvimento da história, mas também das interações entre personagens, por exemplo) são o mais difusos possível, mantendo um ar de enigma sobre tudo aquilo que nos é mostrado. Temos informações suficientes para "construirmos" as nossas próprias interpretações, caso o queiramos fazer, contudo, Cogitore não nos entrega "a papinha toda feita", omitindo detalhes cruciais que acabam por intensificar a intensidade do filme, colocando-nos na mesma situação do seu protagonista errante, à medida que ele se movimenta por uma noite aparentemente interminável.

E que protagonista! Leklou sempre foi uma presença interessante, com aquele seu ar, simultaneamente, imponente e gentil, não raras vezes possuidor do mesmíssimo mistério que Cogitore pretende capturar, no entanto, apetece dizer que nunca o vimos tão bem como aqui. O seu Ramsés é, como diz o próprio cineasta, um "escroque", um vigarista de compasso moral duvidoso, no entanto, também carrega consigo algo de cuidador, como comprovado pela estranha relação que vai desenvolver com aquelas crianças. Nunca sabemos ao certo se podemos confiar nele, mas queremos sempre continuar a acompanhá-lo.

★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)