Em 2017, "Mãe!" consubstanciou o insólito estatuto de Darren Aronofsky no panorama cinematográfico norte-americano. Um autor que se manteve consistente e coerente, trabalhando no interior dos maiores estúdios de Hollywood, sem nunca abdicar da sua independência. Ele é o enfant terrible que ousa sempre que filma, mas, também é alguém que procura aproximar-se do grande público (a título de curiosidade, mencione-se também que Aronofsky é um produtor extremamente prolífico).
E se, "Mãe!" era o culminar de toda a obra de Aronofsky, espiando os "fantasmas" que o acompanham (ou assombram), "A Baleia" evidencia-se como uma continuação desse trabalho, quiçá, "terapêutico" (Aronofsky convocou o termo enquanto promovia "Mãe!", clarificando a dimensão visceralmente íntima dos projetos em que tem embarcado). Fala-se de religião (o Cristianismo nunca está longe, quando Aronofsky anda por perto), da inevitabilidade da morte, do corpo humano enquanto prisão inescapável e, claro, da estranha natureza do amor, simultaneamente, redentora e violenta...
Charlie (Brendan Fraser), um homem com mais de 200 quilos, vive num apartamento decadente, comendo obstinada e determinantemente até à morte. Liz (Hong Chau), enfermeira e sua única amiga, sabendo que não tem como impedir o inevitável, limita-se a facilitar-lhe a vida nos seus últimos dias, providenciando-lhe o maior grau de conforto possível. No entanto, antes de falecer, Charlie quer reconciliar-se com Ellie (Sadie Sink), a sua amarga filha adolescente, que não vê há muitos anos...
À semelhança de "Mãe!", os acontecimentos concentram-se num só cenário, apresentado como uma antecâmara do mundo exterior, tendendo sempre para uma dimensão onírica (a conclusão - sem spoilers - um coup de grâce que é puro Aronofsky, exemplifica isso na perfeição), sem nunca perder a sua inscrição numa realidade que reconhecemos como contendo muitos sinais do nosso tempo.
No entanto, importa reconhecer que "A Baleia" é bem mais que uma tour de force de encenação, especialmente, porque a peça homónima em que tudo se baseia, da autoria de Samuel D. Hunter, exigia um compromisso tremendo dos seus atores e, felizmente, nenhum deles desilude, sendo fundamental dar destaque especial a Brendan Fraser e Hong Chau, com composições de invulgares nuances emocionais que merecem todos os prémios que lhes têm valido (e, porque não, mais alguns), ele, um primor de vulnerabilidade e empatia humanista (pensemos em Emily Watson no "Ondas de Paixão", de Lars Von Trier, e teremos uma ideia do que Fraser faz aqui), ela, estonteante no modo como dá corpo a uma personagem dilacerada pela impotência que sente perante o desaparecimento da única pessoa com quem ainda mantém uma conexão genuína.
Também o trabalho do diretor de fotografia Matthew Libatique, colaborador de Aronofsky desde a sua primeira longa-metragem, "Pi", é um trunfo indesmentível, concentrando-se obsessivamente nos rostos das personagens (a quantidade de close ups é, no mínimo, impressionante), em particular, no de Charlie, ele é, afinal, o primeiro espectador da decomposição do seu pequeno mundo. Felizmente, "A Baleia" tornou-se num surpreendente sucesso de bilheteira, redimindo (aos olhos de uma indústria exclusivamente focada em dinheiro e alheia a tudo o resto) Aronofsky aos olhos de Hollywood, depois do fracasso comercial de "Mãe!", portanto, comemoremos a existência de um autor (sendo certo que ele não é o único), que insiste em percorrer os caminhos que outros não ousam sequer considerar, no processo, construindo objetos virtuosos, que conseguem confrontar as nossas certezas civilizacionais com a fragilidade dos seus fundamentos, sempre num tocante registo humanista, que não exclui, antes convida, uma fantasmagórica sombra de violência.
Um belíssimo filme, saibamos recebemo-lo como tal.
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