Avançar para o conteúdo principal
"Clímax", de Gaspar Noé


Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada god’s eye view, um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais.

Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma mensagem, “ser/existir é uma ilusão fugitiva”, e não demoramos a ouvir a protagonista gritar “Deus está connosco”. Isto para dizer que existe em “Clímax” uma dimensão transcendental que não pode ser ignorada. Contudo, não é a primeira ocasião que o encontramos a perseguir essas sensações. Como tal, porque é que assumem um papel tão relevante desta vez? Acontece que, os seus filmes anteriores eram contos dolorosamente íntimos, quase claustrofóbicos na dureza como entravam e recusavam abandonar a mente dos seus heróis errantes, enquanto “Clímax” é uma viagem coletiva a uma paisagem infernal inescapável, onde todos estão condenados de início e ninguém é meritório de confiança ou piedade. Resumindo de forma necessariamente esquemática e, convenhamos, um tanto ou quanto sensacionalista, “Clímax” é o reflexo perverso do igualmente gaulês “A Turma”.


À semelhança do filme de Cantet, somos introduzidos a um espaço fechado, neste caso, um armazém, onde conhecemos um pequeno grupo de jovens que representam uma França multicultural, tornado o cenário num microcosmos da sociedade. No entanto, aí existia esperança para um possível entendimento, um ideal quase utópico de um futuro viável, enquanto “Clímax” quase assume contornos de panfleto niilista. Uma trip psicadélica densamente envolvente, a culminar num plano longuíssimo (42 minutos), febril e empolgante, que se adequa belissimamente a este conto amoral, onde não há salvação, nem piedade para nenhuma das personagens (convenhamos, todas desprezíveis), a comunidade é uma enorme mentira, quaisquer ideais humanistas estão irremediavelmente quebradas e o ser humano se encontra condenado. Não é o filme mais positivo em cartaz, mas nenhum outro é tão intoxicante.

Texto de Miguel Anjos


Título Original: “Climax”
Realização: Gaspar Noé
Argumento: Gaspar Noé
Elenco: Sofia Boutella, Romain Guillermic, Souheila Yacoub, Kiddy Smile, Claude-Emmanuelle Gajan-Maull, Giselle Palmer
Produtores: Brahim Chioua, Richard Grandpierre, Vincent Maraval, Michel Merkt, Gaspar Noé, Olivier Père, Edouard Weil
Produtores Executivos: Danny Gabai, Eddy Moretti
Diretor de Fotografia: Benoît Debie
Design de Produção: Jean Rabasse
Montagem: Denis Bedlow, Gaspar Noé
Ano de Produção: 2018
Duração: 95 minutos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)