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"Se Esta Rua Falasse", de Barry Jenkins


Quem conhecer o cinema do americano Barry Jenkins, certamente, reconhecerá nele uma vontade incomum de revisitar as convulsões do passado e presente através das muitas nuances dos destinos individuais, procurando uma maneira de filmar o coletivo, sem nunca abandonar o espaço íntimo de uma só personagem, e mantendo sempre uma comovente reverência pela mais genuína sensibilidade melodramática do classicismo de Hollywood.

Se Esta Rua Falasse, à semelhança dos antecessores Medicine for Melancholy e Moonlight, assume esse método de olhar o cinema como uma ferramenta para pensar o mundo. Sem simbologias panfletárias, nem maniqueísmos simplistas, Jenkins ambiciona apenas expor as singularidades emocionais de cada ser humano a fim de puderem integrar memórias que possuam a dimensão e a intensidade de um intrincado fresco histórico.


Estamos na década de 70. O auge do combate pelos direitos civis da comunidade negra ficou no passado, no entanto, os seus membros continuam a ser remetidos ao silêncio, à marginalidade. É nesse cenário dantesco que conhecemos o casal Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James), dois jovens que veem o seu futuro começar a ruir, quando Fonny é encarcerado por um crime de violação que não cometeu.

Escusado será dizer, que qualquer tentativa de falar acerca das condições de vida da população negra nos Estados Unidos vai sempre esbarrar em paralelismos com o panorama contemporâneo. Acontece que, Jenkins é um autor suficientemente inteligente para saber que o espetador consegue aperceber-se disso mesmo sozinho, sem necessitar que as personagens lho digam. Uma conclusão que lhe providenciará um invulgar sentimento de libertação.



Porquê? Pois bem, porque assim pode fundir a sua voz com a de Tish, e deixá-la a ela conduzir o filme como bem quiser (no processo, até ficamos a pensar se é possível desempenhar um ato de humanismo maior que entregar toda a narrativa a voz de uma das suas participantes), numa narrativa que é, afinal, uma tapeçaria não linear que oscila entre a inocência da infância do casal e o negrume do seu presente. Através dela, somos levados a compreender as diferenças entre a perceção individual dos factos e as dinâmicas coletivas, entre a euforia da experiência amorosa e o predomínio social do racismo.

E como acontecia em Moonlight, o que nos apaixona e destrói é a melancolia poética da mise en scène de Jenkins, novamente a apoiar-se nos rostos sempre desolados dos membros do elenco deste conto de vidas perdidas. De KiKi Layne a Stephan James, passando por Regina King e Coleman Domingo, sem nunca esquecer o admirável Brian Tyree Henry que em apenas duas breves cenas exerce em nós um impacto que não pode ser medido. É caso para dizer que ainda existem cineastas que preferem privilegiar o labor dos seus atores aos truques pirotécnicos vazios dos efeitos visuais.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “If Beale Street Could Talk”
Realização: Barry Jenkins
Argumento: Barry Jenkins
Elenco: KiKi Layne, Stephan James, Regina King, Colman Domingo, Teyonah Parris, Michael Beach, Aunjanue Ellis, Dave Franco, Diego Luna, Pedro Pascal, Emily Rios, Ed Skrein, Finn Wittrock, Brian Tyree Henry, Ebony Obsidian, Dominique Thorne
Produtores: Adele Romanski, Sara Murphy, Barry Jenkins, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Megan Ellison
Produtores Executivos: Brad Pitt, Sarah Esberg, Chelsea Barnard, Jillian Longnecker, Mark Ceryak, Caroline Jaczko
Diretor de Fotografia: James Laxton
Compositor: Nicholas Britell
Montagem: Joi McMillon, Nat Sanders
Ano de Produção: 2018
Duração: 119 minutos

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