"Destroyer: Ajuste de Contas"
O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus, ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”).
Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma agente do FBI que aceitou participar como infiltrada numa investigação a um violento grupo de assaltantes, com práticas e crenças que os aproximavam de um culto (nomeadamente, a maneira como os envolvidos veneravam o seu líder, Silas). Parecia ser uma missão relativamente simples, mas um assalto mal-sucedido teve consequências trágicas que a aprisionaram numa depressão que procurava iludir por via do alcoolismo. Volvidos 17 anos, Bell acorda da sua condição miserabilista devido a uma pista que lhe alimenta a esperança de encontrar os criminosos desaparecidos e a redenção que sente necessitar.
Dito assim, porventura, soará a um convencional thriller de polícias e ladrões (uma personagem refere-se mesmo ao sucedido como tal, a certo ponto), porém Kusama dispensa banalidades e encena o todo algures entre o onírico e o niilista, filmando cada momento como se Erin se limitasse a deambular entre a promessa do paraíso e a certeza da danação. À semelhança do protagonista do anterior “The Invitation”, a cineasta volta a filmar os dilemas de uma personagem que vive num permanente processo de coexistência e contaminação, perseguidos pelas memórias do passado e violentados pelos sinais do presente. Para ambos, o simples ato de viver tornou-se numa tarefa incomportável, num calvário terreno.
As semelhanças entre os caminhos tortuosos que perseguem não terminam aí, mas não avançamos mais, especialmente, porque existe algo de muito cinematográfico na realização de Kusama, que “ontem como hoje” continua a preservar o gosto pelo inesperado, constantemente conduzindo a narrativa e os espetadores para lugares inesperados, que pouco ou nada têm que ver com a entediante banalidade das intrigas policiais correntes. E, claro está, Nicole Kidman, cujo rosto envelhecido e ensanguentado abre e fecha o filme, é simplesmente perfeita. O seu olhar sempre desolado é, afinal, a mais intensa e comovente corporização da atmosfera agonizante que pauta toda a narrativa.
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “Destroyer”
Realização: Karyn Kusama
Argumento: Phil Hay, Matt Manfredi
Elenco: Nicole Kidman, Toby Kebbell, Tatiana Maslany, Sebastian Stan, Scoot McNairy, Bradley Whitford, Toby Huss, James Jordan, Beau Knapp, Jade Pettyjohn
Produtores: Phil Hay, Matt Manfredi, Fred Berger
Produtores Executivos: Micah Green, Nik Bower, Nathan Kelly, Thornton Schumacher
Diretora de Fotografia: Julie Kirkwood
Design de Produção: Kay Lee
Montagem: Plummy Tucker
Ano de Produção: 2018
Duração: 121 minutos
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