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CRÍTICA - A ZONA DE INTERESSE

Em 2000, "Besta Sexy", a primeira longa-metragem de Jonathan Glazer, desencadeou amores e ódios. Muitos críticos não se coibiram de anunciar Glazer como um potencial nome de culto. Não se enganaram, no entanto, ninguém antecipou o quão raro seria "encontrá-lo". Diz ele, que a sua natureza "obsessiva" o impede de trabalhar em múltiplos projetos em simultâneo. De facto, "prolífico" não é um termo que possamos associar a um "cineasta bissexto" como ele.

"A Zona de Interesse" é apenas a sua longa-metragem, confirmando a tendência do seu cinema de ir, progressivamente, abandonando uma abordagem dita "convencional". Em "A Zona de Interesse", Glazer consegue, porventura, o feito mais triunfante da sua carreira, isto é, encontrar uma maneira nova de encenar os horrores do Holocausto.

Nele, acompanhamos o quotidiano de Rudolph Höss (Christian Friedel), comandante das SS, da mulher, Hedwig (Sandra Hüller), e os cinco filhos, à medida que tentam tornar a sua casa, situada, imediatamente, ao lado do "local de trabalho" do patriarca, o campo de concentração de Auschwitz, num lar aconchegante.

... e é isso. Como acontecia em "Debaixo da Pele", de 2013, Jonathan Glazer concebeu uma experiência fílmica, tremendamente, incomum. Por um lado, é cinema observacional, dedicando-se a acompanhar, pacientemente, a vida daquelas pessoas. Por outro, Glazer é um artesão em completo domínio das ferramentas do seu métier e todas decisões que toma nos deixam desconcertados, no melhor (ou pior, escusado será dizer, que não se trata de um “filme fácil”) sentido possível do termo.

A banda-sonora de Mica Levi é de uma estranheza permanente, impossibilitando qualquer tipo de conforto, mesmo durante os créditos finais, contudo, Glazer raramente a utiliza, preferindo dar primazia aos sons que os moradores daquela vivenda ouviram dia sim, dia sim, da manhã à noite, sem pausas. Gritos, choro, tiros, entre outros (admirável o trabalho de Johnny Burn, diretor de som, que dedicou mais de um ano a mapear todos os sons que aquelas pessoas ouviriam, rotineiramente, e a perceber como replicá-los da forma mais exata possível). É, no mínimo, dantesco e, quiçá, por isso, apetece descrever “A Zona de Interesse” não como um filme “sobre o Holocausto”, mas sim, como uma viagem só de ida até ao inferno.

Um inferno de indiferença, onde os carcereiros vivem embrenhados nas trevas, sem se aperceberem disso. O quotidiano dos Höss é, assustadoramente, normal, como disse Glazer, “não são demónios de olhos mortos e dentes de vampiro, são pequenos-burgueses”, vemo-los na sua intimidade, a tomarem conta dos filhos e a cuidar da horta, como se um dos piores capítulos da história da humanidade não estivesse a ser escrito a uns metros deles, quem vir “A Zona de Interesse” pensará, inevitavelmente, na “banalidade do mal”, de Hannah Arendt, mas, o mais perturbador é como ilustra o pensamento de Primo Levi, quando disse que “os monstros são reais, mas, não existem suficientes para serem realmente importantes, consequentemente, o problema são as pessoas comuns, disponíveis a aceitar ordens, sem fazer perguntas”.

Como Rudolph e Hedwig Höss, Christian Friedel e Sandra Hüller, respetivamente, são, de facto, admiráveis, quanto mais não seja, porque se anulam em prol do filme, em especial, ele, que tantas vezes vemos de pé, a fumar, enquanto olha para o horizonte, com olhar de quem, muito provavelmente, não está a pensar em nada. Teoricamente, a natureza discreta do trabalho dos atores, pode levar-nos a passar ao lado da sua importância para o sucesso de tão ousado empreendimento, afinal, haverá algo mais ousado do que dizer que os maiores vilões da história são, no fundo, pessoas como nós?

É um filme sem estrelas, em que todos os elementos são pensados ao milímetro para não chamarem atenção, não se sobreporem ao discurso que está a ser formulado, providenciando-nos uma experiência desconfortável, até agonizante, mas, vital e, a espaços, extremamente comovente, como é o caso de um “subenredo”, acerca do qual importa manter algum mistério, sobre uma rapariga que distribui maçãs…

Há filmes que nos oferecem uma oportunidade de desligar o cérebro ou, pelo menos, de escaparmos à realidade, "A Zona de Interesse" é, precisamente, o oposto. Uma experiência pouco convencional, que nos convida a olhar e a refletir. Alienará muita gente, isso é inquestionável, mas, quem conseguir entrar na sintonia de Glazer, é bem capaz de sair a pensar que viu o melhor filme do ano, ainda que estejamos apenas em Janeiro.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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