Michael Mann voltou. Para um cinéfilo, é motivo de regozijo. Para o espetador casual, que oscila entre as salas de cinema e as plataformas de streaming, quiçá, sem uma relação específica com os autores, é uma possibilidade para entrar em contacto com um modelo de cinema classicista por excelência, que já foi muito comum, mas, é hoje, tremendamente raro, dir-se-ia, quase extinto.
Quem espera uma cinebiografia corriqueira que se cuide. Mann e o argumentista Troy Kennedy Martin, falecido em 2009 (Mann passou, aproximadamente, 20 anos a tentar financiar o projeto), escolheram concentrar a ação num único ano, 1957, quando a Ferrari se aproximava da bancarrota.
Quem conhece o cinema de Mann, talvez, sinta uma certa estranheza? Um biopic sobre Il Commendatore, Il Grande Vecchio (entre muitos outros cognomes), Enzo Ferrari? O que une o gigante do automobilismo e o universo obsessivo, noturno e soturno do autor de "Thief", "Heat" e "Miami Vice"? Aparentemente, tudo.
À semelhança de todos os outros títulos que encontramos na filmografia do cineasta de Chicago, "Ferrari" é o conto trepidante de um homem lacónico, dominado por uma pulsão incontrolável. Enzo é tudo menos o herói convencional, moralmente inatacável, que costumamos encontrar no cinema contemporâneo e Mann mergulha de cabeça na sua alma.
Cedo entendemos que Enzo é um homem complexo, o seu casamento com Laura Ferrari esmoreceu, quiçá, por consequência do falecimento do filho, Dino Ferrari, aos 24 anos, ou, então, não, porque ainda Dino se encontrava entre os vivos e Enzo já tinha um "produzido" um descendente ilegítimo, Piero, com a amante Lina Lardi. No entanto, ainda que o seu quotidiano com Laura se tenha tornado frio e, a espaços, violento, é óbvio que há um elo que os continua a unir, que transcende o negócio que criaram juntos, como evidenciado pela relutância de Enzo em reconhecer, legalmente, Piero como filho. A certo ponto, Lardi confronta-o com uma evidência, "toda a gente em Itália sabe" e, a ele, resta-lhe responder, terminando a discussão, com um simples "todos menos a Laura".
Por outro lado, Enzo consegue ser implacável, queixando-se do facto dos seus mecânicos abandonarem o posto para passarem o domingo com as suas famílias ou, num dos momentos mais intensos (e politicamente incorretos) do filme, argumentando que o dever dos pilotos era arriscar a vida nas corridas (historicamente, Enzo sempre preferiu pilotos solteiros, evitando, completamente, pilotos pais, porque defendia que "um piloto quando é pai fica, automaticamente, um segundo mais lento"), que eram um sorvedouro de dinheiro para a Ferrari, mal sustentado pelo fabrico artesanal de automóveis de luxo, desdenhado por Enzo como um meio para atingir um fim, como diz o próprio, a certo ponto, "a Maserati faz corridas para vender carros, eu vendo carros para fazer corridas".
É um retrato contundente e bastante acutilante de um homem a lidar com consequências cumulativas, ao mesmo tempo que, procura redimir-se aos olhos do mundo, da mulher, da amante e até do filho, de alguma forma, escapando ao sentimento de frieza que parece impor a si mesmo (Enzo era conhecido pelos seus óculos escuros, detalhe que o filme estende a várias outras personagens, não como uma moda qualquer, mas, enquanto máscara, como evidenciado pela viúva que, ao ver o carro do seu marido a capotar violentamente na pista, leva os óculos à cara para poder chorar, desse modo, permitindo-se a experienciar o seu pranto de forma "privada").
Na construção deste anti-herói é fundamental mencionar Adam Driver, aqui a entregar uma composição de invulgares nuances emocionais que é da ordem do divino, capitalizando em alguns aspetos que costumamos associar à sua imagem enquanto performer (a intensidade permanente associada àquela imagem de "lobo solitário" que nunca parece "encaixar", inteiramente, em nenhum ambiente) e somando algumas novidades (a caracterização envelhece-o, é certo, mas, é admirável como o próprio Driver personifica a idade de Enzo, movendo-se e dialogando como alguém que sentiu o passar dos anos no corpo e, naturalmente, também na alma). E se, ninguém tem tanto tempo (ou material) para brilhar como ele, não há como menorizar o trabalho Penélope Cruz (Laura Ferrari) e Shailene Woodley (Lina Lardi), exemplares como as mulheres que amam Enzo, mesmo sabendo que ele nunca será quem elas gostariam.
Dito isto, quando se fala de um cineasta como Mann, é difícil não sair do filme com a sensação de que é mesmo ele quem rouba as atenções. A mise en scène depurada, depuradíssima, plena de um classicismo avesso a modas, que saltita, elegante e alegremente, entre momentos de intimismo cortante e sequências de grande espetáculo, como as corridas, onde se sente o perigo, dir-se-ia, constante daquele ofício como raramente tem acontecido no cinema, os pilotos de Enzo (consequentemente, os pilotos de Mann) têm algum glamour, não há como negá-lo, mas, acima de tudo, possuem a aura fantasmática de quem dança com a morte profissionalmente, na esperança (eventualmente vã) de lhe escapar, enquanto tal for possível.
Tudo isso se acumula para fazer de "Ferrari" um épico à antiga, que confirma, uma vez mais, o estatuto de Mann como um "estranho" na Hollywood contemporânea, um cineasta de hoje, com um alma antiga, representante, porque não, acólito de um cinema artesanal, irredutivelmente humano, que já foi mais comum do que é no seio da indústria.
Não reencontrávamos Mann nas salas de cinema desde 2015, ano de "Blackhat". Esperemos não ter de esperar outros nove anos...
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