Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "POBRES CRIATURAS"

Em 2009, um OVNI chamado "Canino" arrebatou o Festival de Cannes. À data, poucos reconheciam o nome de Yorgos Lanthimos e, excluindo Theo Angelopoulos (1935-2012) ou Costa-Gravas, mesmo os cinéfilos mais dedicados teriam dificuldade em nomear cineastas gregos, no ativo ou na reforma, vivos ou mortos. Foi um momento fundacional, o começo de uma suposta Nova Vaga, batizada por "estudiosos" como Greek Weird Wave (traduzido à letra, Vaga Grega Estranha), que revelou autores como Athina Rachel Tsangari ("Attenberg", "Chevalier"), Panos H Koutras ("Xenia", "Dodo"), Argyris Papadimitropoulos ("Suntan", "Monday") ou Christos Nikou ("Apples", "Fingernails").

Em 2024, tudo mudou. Lanthimos tornou-se numa das coqueluches da Hollywood contemporânea, acarinhado pelo seu arrojo e, consequentemente, capaz de convencer celebridades mundiais a participar em filmes muito pouco convencionais. "Pobres Criaturas" representa o fecho de um ciclo, o argumento tem pontos em comum com o de "Canino", nomeadamente, a ideia de uma dinâmica familiar predicada num isolamento inviolável (ambos apresentam um pai de família que "protege" os filhos, impedindo-os de sair de casa), no entanto, é claro como água que o autor não é, necessariamente, o mesmo. É ver o meticuloso trabalho estético, transformando "Pobres Criaturas" num faustoso espetáculo visual, como só Hollywood (e um orçamento de 35 milhões de dólares) poderia produzir.

Não é de agora, "A Favorita", a longa-metragem anterior de Lanthimos, também com Emma Stone, argumento de Tony McNamara e cinematografia de Robbie Ryan, já o encontrava a reinventar a forma do seu cinema, até então, meticulosamente, asséptico, mas, "Pobres Criaturas" é, substancialmente, mais estilizado, aproximando-se mais de Wes Anderson ou Ari Aster que de Stanley Kubrick (Yorgos não se coibiu de o mencionar, a ele e ao seu "Barry Lyndon", enquanto influência na construção de "A Favorita").

Em "Pobres Criaturas", entramos numa Londres Vitoriana alternativa, reimaginada segundo o ideário estético do movimento steampunk, que acompanha Bella Baxter (Emma Stone), uma experiência laboratorial do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), brilhante (e excêntrico) cirurgião britânico que, ao encontrar uma mulher grávida próxima da morte, na sequência de uma tentativa de suicídio, resolveu remover o cérebro do bebé e colocá-lo na cabeça da mãe.

Surpreendentemente, Bella avançou rapidamente, adquirindo conhecimentos e até desenvolvendo ambições, mas, nem Baxter, nem o seu ajudante, Max McCandles (Ramy Youssef), querem que Bella abandone a opulenta mansão daquela estranha família improvisada, sem eles, à descoberta do mundo, no entanto, quando Duncan Wedderburn (Mark Ruffallo), um dandy, bastante idiota, ainda que, em última instância, totalmente inofensivo, entra em cena, torna-se óbvio que não há como conter Bella em casa...

O conceito de "Pobres Criaturas" convoca, inevitavelmente, memórias de "Frankenstein" e "Pinóquio", no entanto, o filme acaba por ter poucas semelhanças com esses textos emblemáticos. A fábula não é, inteiramente, colocada de lado, mas, o que interessa mesmo ao cineasta é montar uma comédia screwball, simultaneamente, antiquada e disruptiva, a meio-caminho o mais barroco Tim Burton e o cinema lúdico-libidinoso de Russ Meyer, resultando num divertidíssimo festim de humor anárquico, onde não faltam gags memoráveis.

Se tem a contundência dos filmes que Lanthimos idealizou com Efthymis Filippou ("Canino", "A Lagosta", "O Sacrifício de um Cervo Sagrado", etc.)? Não, "Pobres Criaturas" anda muito mais próximo de "A Favorita", ainda que evidencie uma evolução, principalmente, cénica, comprovando que Yorgos conseguiu mesmo impor uma lógica excessiva, grotesca, absurdista e surrealista no sistema de estúdios hollywoodesco. Continuamos a sentir saudades desse período, menos acessível, é certo, mas, mais suculento da sua filmografia.

Ainda assim, há que admirar o empreendimento que Lanthimos conseguiu levar a cabo aqui, assumindo o seu estatuto de outsider, interessado em produzir filmes que não encaixam, de maneira nenhuma, nas linguagens que Hollywood absorve e regurgita. E se, os seus filmes atuais nos parecem menos lancinantes, é possível argumentar que os seus talentos enquanto diretor de atores se encontram igualmente impressionantes, quiçá, até mais. É ver a atenção que presta aos membros do elenco de "Pobres Criaturas", permitindo-lhes escapar de coletes-de-forças e maneirismos para criar seres frágeis, são cartoons, mas, cartoons com alma, é o caso da Bella Baxter de Emma Stone, possivelmente, a mais estonteante composição da sua carreira, do cientista louco de Dafoe e, se calhar, principalmente, do Duncan de Mark Ruffalo, a reinventar-se, completamente, como ator cómico e a protagonizar alguns momentos de antologia.

É, no mínimo, bizarro que um filme tão mal-comportado se tenha tornado num êxito de bilheteira, mas, é o tipo de acontecimento rocambolesco que merece ser celebrado.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)