Em 2004, "O Despertar da Mente" (no original, "Eternal Sunshine of the Spotless Mind") tornou-se num surpreendente fenómeno de popularidade, entre crítica e público. Nele, assinalava-se o encontro entre duas das mentes mais indomáveis do panorama contemporâneo, o realizador Michel Gondry, arquiteto de um cinema de bricolage, excêntrico por natureza, reinterpretando o quotidiano à luz do onirismo, e Charlie Kaufman, dono de uma escrita inconfundível, capaz de mergulhar nas profundezas da psique humana com uma contundência lancinante, que não abdica de uma componente lúdica muito pessoal.
Nem Gondry, nem Kaufman conseguiram replicar esse sucesso. O primeiro, saltitou entre os EUA e França, sem nunca abdicar da "estranheza" que o caracterizava, tornando-o num autor de culto, mas, dificultando-lhe a vida nas bilheteiras, enquanto o segundo se virou para a realização (e, recentemente, para a literatura), com resultados tremendamente fascinantes, ainda que pouco ou nada acessíveis ao espetador comum (a fama de Kaufman como autor de títulos de difícil compreensão só tem crescido). Uma coisa é certa, clara, inquestionável até, quando olhamos para o panorama cinematográfico atual, é muito complicado argumentar que as suas linguagens, tão específicas, tão idiossincráticas, não se tornaram referências e influências centrais.
Ora, terminado um hiato de 8 anos (pelo meio, houve videoclips, muitos videoclipes, alguns anúncios publicitários e ainda uma experiência conturbada no pequeno ecrã), Gondry volta ao seu habitat natural, que é a sala de cinema, com "O Livro de Soluções", uma comédia melancólico-burlesca, que coloca Pierre Niney, uma das coqueluches do cinema francês moderno, a interpretar um alter-ego do próprio Gondry, adicionando à dimensão íntima do projeto que, aliás, encontra as suas raízes em nas convulsões que o cineasta experienciou enquanto filmava "A Espuma dos Dias", adaptação do romance homónimo de Boris Vian, que fora a sua última incursão no cinema de grande orçamento (grande orçamento à francesa, portanto, um terço ou um quinto de um blockbuster de Hollywood, mas, seja como for, um intimidante empreendimento).
Niney é Marc, um realizador insubmisso, que trabalha na sua mais recente longa-metragem. Um dia, Marc apresenta as primeiras imagens ao seu produtor, Max (Vincent Elbaz), e aos restantes representantes dos interesses do estúdio. No entanto, tudo corre mal. Os executivos dão o filme por perdido e, numa tentativa de recuperarem o seu investimento, decidem remover Marc do processo e incumbir Max de remontar as imagens da forma mais coesa e convencional possível, mas, Marc não permite que o desrespeitem assim, portanto, rouba todos os materiais já filmados e, juntamente com os seus colaboradores mais fiéis, Charlotte (Blanche Gardin), editora, e Sylvia (Frankie Wallach), assistente promovida a produtora, ruma à casa da tia, Denise (Françoise Lebrun), nas Cévennes, para terminar a sua obra em paz. Pelo meio, retoma um projeto pessoal, O Livro das Soluções, uma espécie de diário que auxiliará o seu leitor a encontrar soluções simples para problemas complexos.
Quem souber algumas coisas acerca de Gondry reconhecerá o nível de autoexposição da narrativa, Denise é, claramente, baseada na verdadeira tia do cineasta, Suzette, dona da casa onde "O Livro das Soluções" foi parcialmente filmado e, previamente, retratada por Gondry no documentário "L'Épine dans le coeur". Os choques mais ou menos contenciosos entre o autor megalómano e os seus produtores remetem, primariamente, para "A Espuma dos Dias", mas, em bom da verdade, Gondry sempre teve dificuldades em lidar com influências externas (é ele quem explícita, por exemplo, o sofrimento que lhe causou trabalhar na televisão, na série "Kidding"). O Livro das Soluções é um caderno de apontamentos que Gondry começou a escrever durante a rodagem de "Natureza Humana", a sua primeira longa-metragem...
Este é, então, um exercício de autoficção, que deixa Gondry trabalhar como prefere, com poucos meios, permitindo-lhe soltar a sua criatividade, sem necessitar de se preocupar com a pressão dos investidores, ao mesmo tempo que, o auxilia a reconciliar-se com o passado, a ponto de, em Cannes, tanto ele, como Niney, descreveram o processo de filmagem como "uma terapia". Bom para eles, bom para nós, porque "O Livro de Soluções" é uma pequena maravilha. Simultaneamente, uma comédia hilariante, onde se acumulam momentos inolvidáveis de pura bizarrice, comprovando, se dúvidas houvesse, que Gondry continua a ser um dos cineastas mais imaginativos da paisagem contemporânea (e não só), e um drama tremendamente comovente, a dissecar a vulnerável condição do artista, que, inevitavelmente, necessita de expor demasiado de si, levando-o a temer a rejeição. Neste caso, inseguro em relação aos frutos do seu trabalho, Marc não consegue sequer ver o filme que dirigiu.
É, de uma assentada, uma homenagem ao labor cinematográfico e uma desconstrução satírica do mesmo, por um lado, realçando, positivamente, o espírito criativo (há alguns momentos belíssimos em que Gondry captura, lindamente, o êxtase da criação, levando-nos, também nós que ali estamos sentados, a acompanhar o desenrolar da história, a rejubilar conjuntamente com Marc) e combativo do seu protagonista, por outro, deixando claro que ele é um tipo impulsivo e paranóico, que exige soluções à última da hora e transforma a pós-produção do filme num autêntico pesadelo para todos os envolvidos. Gondry quer, naturalmente, que simpatizemos com ele, que entendamos a dor que, inevitavelmente, acompanha e, em última instância, assombra qualquer tipo de processo criativo, mas, não é por isso que sanitiza a sua imagem, absolvendo-se de qualquer noção de culpabilidade, quanto mais não seja, por dar cabo do juízo das poucas pessoas que, de facto, o apoiam incondicionalmente.
Como é apanágio seu, Gondry encena esta epopeia íntima como uma desvairada féerie, plena de achados poéticos, situações cómicas de ir às lágrimas e ótimas surpresas, pelo meio, há mil e um momentos de inimaginável brilhantismo que, sozinhos, serviriam (e muito bem) de síntese do apelo do Gondry, como a comovente sequência em que Marc se afunda, literalmente, na cama. Diz ele que, a cada novo filme, tenta convencer as pessoas a esquecer "O Despertar da Mente", se calhar, na ótica de quem tem acompanhado o seu trabalho, até conseguiu, "O Livro de Soluções" encaixa lindamente com os seus títulos mais recentes, "A Malta e Eu" e "Micróbio e Gasolina", odisseias íntimas, a fervilhar de criatividade, que se marimbam para fórmulas convencionais e nos providenciam experiências que são tudo menos "certinhas" e "arrumadinhas".
Ajuda que o elenco seja um dos melhores que Gondry já reuniu, com Niney a capturar a energia maníaca, incontrolável de Marc, sem abdicar da melancolia que o persegue, enquanto contraponto para a sua extravagância, Blanche Gardin, mais dramática que o habitual, e Françoise Lebrun, nome incontornável de um cinema francês que diz muito a Gondry (é impossível vê-la e não pensar, por exemplo, em "A Mãe e a Puta", de Eustache) são ideias, a espaços, até comoventes.
Saibamos receber Gondry novamente e, claro está, folhear este seu livro com a atenção que ele merece.
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