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CRÍTICA - "VERMIN - A PRAGA"


Mais uma semana, mais um carregamento de oito (!) longas-metragens nas nossas salas (na próxima quinta-feira, recebemos outro octeto de filmes). O sobrecarregamento é óbvio e insustentável, quanto mais não seja, porque se tornou comum ver filmes (uns melhores que outros, é certo, mas, isso é outro debate) que passam uma ou duas semanas nos cinemas, antes de serem "expulsos", sem pompa, nem circunstância, para dar lugar a outros que, perversamente, se encontram condenados a sofrer o mesmo destino.

"Vermin - A Praga", a primeira longa-metragem de Sébastien Vanicek, é um desses títulos "desprotegidos". Nem teve direito a uma despendiosa (e ruidosa) campanha publicitária, nem tem um autor reconhecível ao leme, votando-o a uma "terra de ninguém", onde muitos se têm perdido recentemente. Seria, não tenhamos medo do peso das palavras, uma tragédia se assim fosse. Acontece que, "Vermin" nos providencia a oportunidade de descobrir uma nova voz, autêntica, genuína e singular, no panorama cinematográfico. É, pura e simplesmente, a primeira revelação do ano.

Não somos os primeiros a concluí-lo, basta ver que, impressionadíssimo com este conto repleto de intimidantes aracnídeos, Sam Raimi se "despachou" a recrutar Vanicek para assinar o próximo capítulo da franquia "Evil Dead", mas, trata-se de um daqueles casos que é preciso ver para crer. Combinando o film de banlieue (um "género", se lhe quisermos chamar assim, tremendamente importante no contexto francês, sempre interessado, dir-se-ia mesmo, fascinado, em dar conta das vivências de quem vive nos bairros sociais de Paris e Marselha) com os códigos do filme de género, na sua vertente mais política (aí, a referência é, naturalmente, John Carpenter, mas, não menosprezemos a influência de Tobe Hooper).


Nele, acompanhamos Kaleb (Théo Christine), um rapaz de 30 anos, proveniente de um bairro social, nas imediações de Paris, que tenta, a todo o custo, agarrar-se a um mundo que desaparece lentamente. A irmã, Manon (Lisa Nykaro), à semelhança de muitos dos vizinhos, diz-lhe que o melhor é vender o apartamento que a falecida mãe lhes deixou e procurar casa noutro lugar. Não é descabido, afinal, aquele prédio decadente pode facilmente ser gentrificado, permitindo à imobiliária uma boa margem de lucro. No entanto, Kaleb recusa-se a virar costas àquele lugar.

À medida que o mundo o parece deixar para trás, Kaleb encontra um refúgio na sua coleção de animais exóticos. Um dia, compra uma aranha, vinda do Egito, numa loja de conveniência, sem saber ou sequer suspeitar que se trata de uma espécie tremendamente ameaçadora... Simultaneamente, reminiscente de "O Ódio", de Mathieu Kassovitz (e, naturalmente, do seu equivalente no século XXI, "Os Miseráveis", de Ladj Ly) e "Aracnofobia", de Frank Marshall, "Vermin" recorre ao som e aos espaços acanhados e escurecidos do edifício para administrar tensão, calafrios e muitos, muitos sustos, num exercício de género que reconcilia a série B com a sua dimensão política, providenciando-nos, de uma assentada, um estupendo filme de terror, com antagonistas intimidantes e repelentes (quem sofre de aracnofobia que fuja, porque há muito que os insetos de oito patas não eram filmados de forma tão ameaçadora), e um elucidativo naco de realismo social, construindo um retrato contundente do quotidiano de pessoas que tantas vezes são esquecidas ou até mesmo marginalizadas.

É uma primeira longa-metragem de respeito, daquelas que parece sugerir um jovem autor já em pleno domínio das ferramentas do seu métier, capaz de as colocar a todas ao serviço de uma narrativa de fervilhante imaginação, demonstrando preocupações sociais e amor à cinefilia, é um estrondo.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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