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CRÍTICA - "A BESTA"


Bonello é um "caso" pouco convencional. Os seus filmes permanecem circunscritos a um circuito tremendamente limitado, aliás, em Portugal, apenas quatro conseguiram estreia comercial, "L'Apollonide - Memórias de um Bordel", "Saint Laurent" e "A Criança Zombie". Encontramo-lo frequentemente no alinhamento dos mais sonantes festivais de cinema mundiais, no entanto, quase nunca o vemos na competição principal desses mesmos certames. Não é que isso signifique muito, mas consubstancia a ideia de que Bonello é uma "carta fora do baralho" com a qual ninguém sabe muito bem o que fazer, onde o arrumar.

Se calhar, por isso mesmo, tornou-se num dos mais influentes autores do panorama contemporâneo. Subitamente, tornou-se normal ver jovens cineastas a mencioná-lo como uma inspiração e, em jeito de culminar dessa ascensão, eis que deparamos com o seu filme mais ambicioso e, não adianta escondê-lo, porque é fútil conter o entusiasmo, a sua obra-prima, "A Besta", uma fulgurante reinterpretação de "A Fera na Selva", de Henry James.

"Reinterpretação" e não "adaptação" porque Bonello segue, essencialmente, o conceito e o espírito de James, utilizando-o como um ponto de partida mais do que outra coisa. Assim, acompanhamos Léa Seydoux e George McKay em 1910, 2014 e 2044. As suas personagens reencarnam, mudam de vida, de continente, no entanto, continuam a encontrar-se, uma e outra vez. O contexto, escusado será dizê-lo, muda radicalmente, aliás, nem o tom permanece inalterado, oscilando entre o melodrama de época (1910), reminiscente, por exemplo, do Martin Scorsese de "A Idade da Inocência", o filme de terror (2014), a meio-caminho entre os mecanismos do slasher e a atmosfera intoxicante dos momentos mais macabros da filmografia de David Lynch, e a ficção-científica, terreno onde Bonello escolhe seguir um caminho tremendamente individual, afastando-se de qualquer comparação (se nos forçassem a nomear algum equivalente, diríamos que é uma combinação de "THX 1138", de George Lucas, e "Wall-E", de Andrew Stanton).


Podiam ser filmes diferentes, mas não são, até porque o conceito é sempre o mesmo, há alguém que tem medo, ou melhor, pavor de amar, por suspeitar que a paixão pode conduzir ao desastre, no entanto, como costumava acontecer na tragédia grega, fugir da tragédia apenas confirma a sua chegada. É um filme desconcertante, que se desenrola com a elegância de um sonho febril, entrelaçando o real e o onírico numa dança hipnótica que perturba muito, mas comove mais. Bonello é, afinal, um romântico, no sentido clássico do termo entenda-se, "A Besta" é um assalto aos sentidos, daqueles que desencadeiam todas as sensações inimagináveis, mas, acima de tudo, é um inquérito sobre a natureza potencialmente utópica do amor.

E se, o amor e a vida se encontram permanentemente ligados, na medida em que o primeiro desses conceitos é o culminar transcendental, o auge, a raison d'être do segundo, então, a morte não pode andar longe... Em "A Besta", a simbologia é permanente (vejamos, por exemplo, a natureza repetitiva do argumento que encena e reencena versões ligeiramente diferentes das mesmas sequências ao longo das três linhas temporais, transformando a existência numa espécie de teste que necessitamos de repetir até conseguirmos uma eventual nota positiva) e tanto aponta para o amor, para vida, como para a tragédia, para a morte, colocando Seydoux e McKay numa valsa malsã, entre aquilo que procuram atingir e o que tentam desesperadamente evitar, reconhecendo sempre que o seu sonho, o amor pleno por que anseiam, pode ficar eternamente fora de alcance (e tudo se encontra fora de alcance neste filme, como evidenciado pela linha temporal que, supostamente, representaria o presente, o nosso "aqui e agora", acontecer há 10 anos, porque nem o presente é uma garantia, algo que podemos agarrar concretamente), especialmente, à medida que a passagem do tempo conduz à progressiva desumanização (desumanização do Outro, na segunda história, e desumanização à escala global na terceira, quando a única maneira de ser um membro produtivo da sociedade é aceitar um processo de otimização por via de um equipamento de Inteligência Artificial).

Neste processo, Seydoux e McKay são brilhantes, ela sempre desconfiada, não, apavorada, ciente de que, o azar espreita e, a qualquer momento, a danação pode consumir a sua existência, a sua alma, enquanto McKay adota uma persona enigmática, alternando, muito mais do que ela, de personalidade entre cada história e, a certo ponto, subvertendo a noção de que será Seydoux enquanto protagonista a que mais teme, aliás, é sempre ele quem mais depressa se predispõe a aceitar a solidão do que a procurar algo mais. Nesse sentido, é impossível ou, no mínimo, muito, muito difícil não mencionar que, para Bonello, "A Besta" tem um significado melancólico, inicialmente, o papel de McKay pertencia a Gaspard Ulliel, amigo, confidente e colaborador assíduo, para quem o cineasta teria escrito o filme, no entanto, o seu falecimento súbito, em 2022, levou Bonello, primeiro, a considerar abandonar o projeto e, depois, a reconstruí-lo praticamente do 0, sabendo que o fantasma de Gaspard, a quem o filme é dedicado (o seu nome é mesmo o último que veremos encher o ecrã), pairaria sempre sobre cada imagem.

É, por isso, um filme mergulhado num sentimento de melancolia do qual não é possível escapar, que nos pede que aceitemos o seu peculiar funcionamento, que entremos, sem ceticismos, nem reservas, numa proposta-limite. Quem disser que sim ao convite, arrisca-se a ter uma experiência única, quem não o fizer, só muito dificilmente não o rejeitará instantaneamente. Pior para eles, por aqui não temos dúvidas, "A Besta" é um dos acontecimentos definitivos do ano cinematográfico de 2024.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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