Michel Franco é um cineasta empático? O termo raramente lhe foi associado, aliás, títulos como "Nova Ordem" ou "Crepúsculo" levaram muitos a acusá-lo de sadismo, apoiando-se permanentemente num niilismo incessante para encenar as mais abjetas barbaridades. Enfim, temos de assumir que quem levanta essas acusações nunca viu, por exemplo, "Chronic", o seu primeiro filme em inglês, onde não era possível fechar os olhos ao humanismo.
Em "Memória", encontramo-lo na sua melhor forma, pronto para confundir os seus detratores, com um filme... "fofinho", devastador é certo, mas, "fofinho" na mesma. É o conto de Sylvia (Jessica Chastain), uma assistente social, profundamente traumatizada pelos abusos sexuais que sofreu, primeiro, às mãos do pai e depois, de um ex-namorado, e Saul (Peter Sarsgaard), cuja vida é moldada e, acima de tudo, condicionada por uma doença degenerativa debilitante.
É um conceito, no mínimo, complexo, quanto mais não seja, porque mesmo antes de se encontrarem e desenvolverem uma aliança romântica destinada a quebrar tabus, Sylvia e Saul já lidam com problemas tremendamente complexos, que exigem um tratamento adequado. Franco reconhece isso mesmo e, consequentemente, proporciona-nos a oportunidade de entrar na intimidade daquelas pessoas, de as conhecermos em múltiplos contextos, de entender, concretamente, que fantasmas as assombram. Apegamo-nos a eles imediatamente, ainda que saibamos que o futuro da sua relação é condicionado por fatores que escapam ao seu controle.
Enquanto Sylvia e Saul, Chastain e Sarsgaard (ele venceu a Taça Volpi na edição de 2023 do Festival de Veneza) têm aqui composições de invulgares nuances emocionais, materializando a ligação quase mágica que une aquelas duas almas solitárias. Eles não necessitam de muito para produzir uma "faísca" genuína e nós acreditámos logo. São atores à beira de uma dimensão transcendental, num registo intimista em que o alívio do humor e a força trágica de uma lágrima coexistem seguramente, andam de mão dada. Um extraordinário melodrama de recorte clássico, simultaneamente, dilacerante e libertador, que reforça o estatuto de Franco como um dos principais autores do panorama contemporâneo, dentro e fora do México. Que ninguém volte a acusá-lo de não ter coração...
★★★★☆
Texto de Miguel Anjos
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