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CRÍTICA - "MOTEL DESTINO"


Estranhamente, o mercado português desconhece o cinema brasileiro. Nem sempre foi assim, mas, atualmente, excluindo Walter Salles, Karim Aïnouz e Kleber Mendonça Filho, não nos lembramos de nenhum outro autor(a) contemporâneo(a) cujo trabalho tenha estreado consistentemente. Se há outros cineastas dignos de nota a fazer cinema no Brasil ao dia de hoje? Há sim, quem frequenta o Indielisboa e, ocasionalmente, o MOTELX pode confirmá-lo, no entanto, por algum motivo, o circuito comercial permanece, maioritariamente, vedado ao que lá se faz.

"Motel Destino", a mais recente longa-metragem de Aïnouz estreia-se entre nós em circunstâncias especiais, trata-se de um lançamento simultâneo com o mercado brasileiro, estratégia que se saúda, principalmente, quando a norma, pelo menos, no que às produções independentes diz respeito, parece ser a das estreias atrasadas, estando o calendário repleto de títulos que necessitaram de 1 a 2 anos para encontrarem um lugar no nosso calendário. Aliás, o filme anterior de Aïnouz, "Firebrand", estreado na edição de 2023 do Festival de Cannes, ainda aguarda lançamento (atualmente previsto para meados de outubro).


Ora, quem acompanhar o percurso de Aïnouz e, consequentemente, a sua persona, saberá que "Motel Destino" tem um significado especial para ele. O argumento data de 2017, contudo, entre as complicações comuns à produção de uma longa-metragem e a eleição de Jair Bolsonaro, que impulsionou Aïnouz a exilar-se na Alemanha, à data, assumindo que nunca voltaria a filmar no Brasil, só agora se concretizou. Trata-se de uma experiência um tanto inusitada numa filmografia, tradicionalmente, mais bem-comportada, ao contrário de, por exemplo, "Praia do Futuro" ou "A Vida Invisível" (porventura, os títulos mais reconhecíveis do seu cânone), "Motel Destino" rejeita os mecanismos do melodrama e, porque não, do bom gosto, atirando-se de cabeça, sem preconceitos, reservas ou pudores, para um exercício de género em que o noir clássico embate com o erotismo exacerbado, sem abdicar de um embalo, ou melhor, de uma sensação de romantismo que perdura, nas imagens e em nós.

Nele, acompanhamos um anti-herói errante, Heraldo (Iago Xavier), órfão de mãe e pai que sobrevive à custa de pequenos crimes, no contexto de uma organização criminosa liderada por uma matriarca enigmática. O seu plano é abandonar o Ceará e rumar a São Paulo, onde, quiçá, exista uma vida melhor à espera, mas, para conseguir libertar-se do gangue para o qual "trabalha", necessita de levar a cabo um último golpe, neste caso, o assassinato de um milionário francês. Resumindo de forma necessariamente esquemática, digamos que corre mal, levando Heraldo a necessitar de encontrar um possível esconderijo, onde ninguém se lembre de o procurar, o local escolhido é o motel titular, onde acabará por arranjar emprego e, eventualmente, imiscuir-se no quotidiano do casal proprietário, Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção).


Num momento em que o desaparecimento do sexo no cinema é uma questão de fundo, Aïnouz não demora a posicionar-se. "Motel Destino" é de um erotismo ardente, desbragado e desavergonhado, veja-se, por exemplo, como a banda-sonora é, praticamente, substituída (no mínimo, diríamos que é complementada) pelos gemidos e gritos vindos dos quartos do estabelecimento titular. É uma escolha ousada, ousadíssima até, quanto mais não seja, porque facilmente se poderia tornar irritante, mas resulta lindamente, contribuindo para a criação de uma atmosfera muito peculiar, pautada por um sentimento de desejo que é absolutamente incontrolável. Nesse sentido, também há um detalhe curioso, nomeadamente, a forma como Aïnouz encena o sexo como um ato celebratório, a espaços, como uma espécie de recusa da morte (Heraldo é o primeiro a dizer que nasceu condenado à morte, levando-o a necessitar de a iludir constantemente, sem descanso), não há qualquer sentimento de culpa presente (Aïnouz é o primeiro a reconhecê-lo, assumindo que a "culpa" resulta de uma influência sociopolítica judaico-cristã que não lhe diz nada).

Curiosamente, essa dimensão que o próprio cineasta tem aproximado do cinema trash e até da pornografia nunca chega sequer perto de reduzir, quanto mais de eliminar, a pulsão romântica do seu cinema. "Motel Destino" é um filme brutal como poucos, não parece, por exemplo, a violência é praticamente inexistente, mas, a realidade em que as personagens coexistem é tudo menos esperançosa. Heraldo, como o próprio afirma, é um condenado à morte, alguém que nunca teve nada, tendo que se desenrascar como possível, enquanto Dayana é vítima de um marido cruel e dominador, que usa e abusa do seu pequeno poder (o Motel Destino é, de certa forma, o seu reino pessoal, onde aplica a justiça como lhe parecer correto), nunca deixa de ser óbvio que aquele Ceará é uma paisagem desolada, onde a pobreza governa despoticamente e questões como o racismo ou o machismo (o feminicídio é um dos problemas mais graves do Brasil contemporâneo e se isso não está literalmente no filme, está subtextualmente), consequentemente, a melhor forma de dar conta daquele quotidiano só pode mesmo ser um cruzamento entre a natureza performativa do cinema erótico (afinal, o sexo ainda pode ser o mais intimo dos bailados) e a melancolia terminal do noir, género tendencialmente associado ao policial que nunca deixou, contudo, de dever (muito) ao romantismo clássico, ocasionalmente (é o caso), possuindo mesmo uma veia poética que pode arrasar.

As personagens de "Motel Destino" são os derrotados, os que foram vencidos pela vida, felizmente, o cinema ainda lhes pode providenciar as alegrias que a existências lhes negou, ainda que momentaneamente ainda podem ser elevados aos estatuto de heróis cinematográficos, viver aventuras maiores que a vida e escapar à morte, uma e outra vez, quanto mais não seja pelo êxtase... mesmo que proveniente do excesso do pecado, mas, esqueçamos lá isso, que Karim, seguramente, prefere que não o chateamos com os chavões da moral judaico-cristã.

★★★★☆
Texto de Miguel Anjos

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