O tema das crianças e adolescentes que possuem ou adquirem poderes paranormais tem bastante história quer na literatura fantástica, de terror e de ficção científica, quer no respetivo cinema. Basta recordar "A Aldeia dos Malditos", de Wolf Rilla, "O Poder do Fogo", de Mark L. Lester, "Carrie", de Brian De Palma ou "Chronicle", de Josh Trank. A eles junta-se agora "Os Inocentes", escrito e realizado pelo norueguês Eskil Vogt (o coargumentista de Joachim Trier, tendo colaborado no processo de escrita de "Reprise", "Oslo, 31 de Agosto", "Ensurdecedor", "Thelma" e "A Pior Pessoa do Mundo"), que faz uma abordagem muito nórdica ao tema.
"Os Inocentes" possui o seu quê dos filmes supracitados (principalmente, "Chronicle"), no entanto, também partilha muitas semelhanças com um outro título de culto, nomeadamente, o "Scanners", de David Cronenberg, mesmo que Vogt abdique da sanguinolência espampanante que caracterizava os momentos mais emblemáticos de "Scanners". A história passa-se num anónimo bloco de apartamentos dos subúrbios noruegueses, nas imediações de uma grande cidade. Ida (Rakel Lenora Fløttum), de 9 anos, e a sua irmã mais velha autista, Anna (Alva Brynsmo Ramstad), mudaram-se com os pais para lá recentemente. Nos prédios do lado, vive o também jovem e solitário Ben (Sam Ashraf) e a pequena Aisha (Mina Yasmin Bremseth). Os quatro têm poderes telecinéticos e telepáticos, que aparentam ser mais intensos quando se encontram juntos, como se funcionasse em rede.
O que se segue constituirá o exato oposto de uma inofensiva aventura juvenil. Quem esperar um filme de super-heróis, apontado ao público infanto-juvenil, à medida daquilo a que Hollywood nos tem habituado, corre o risco de abandonar a sala de cinema traumatizado. É que, Ben é um miúdo cruel, que não hesita em vitimizar animais e, mesmo Ida não é flor que se cheire, como provado pela maneira como magoa a irmã autista repetidamente...
Aisha, a mais sensível do grupo, não demora a entender que a história terá de acabar em sangue. Enquanto os adultos permanecem passivos, desconhecendo os poderes dos seus filhos, da natureza agressiva do seu quotidiano e passando ao lado da crescente atmosfera de tensão e temor que se desenvolve entre eles. Nesse sentido, destaque-se a maneira subtilíssima como Vogt retrata esse processo, praticamente sem recorrer a efeitos visuais, manejando na perfeição o som e tirando máximo partido das formidáveis interpretações deste elenco de palmo e meio.
No limite, aquilo que está em jogo em "Os Inocentes" é precisamente a ideia da inocência. Assumindo, ou melhor, reconhecendo que as crianças são inerentemente cruéis, uma vez que, a violência existe dentro de todos nós e só se desaparecendo (ainda que nunca permanentemente) à medida que vamos sendo "domesticados" (forma, porventura, demasiado violenta de dizer que nos são incutidos os valores da sociedade civilizada), Vogt argumenta que a "inocência" de que tanto falamos (e que costumamos querer proteger) pode, afinal, ser algo negativo. Em "Os Inocentes", as crianças não são puras, no sentido em que permanecem intocadas pelos males do mundo, pelo contrário, o seu pensamento infantil impede-as de pensarem o mundo de acordo com qualquer tipo de código moral, levando-as a encarar a violência como uma resposta, ou melhor, como uma linguagem aceitável.
Vogt não vacila na hora de retratar essa mesma violência, seja ela física ou psicológica, este é um filme repleto de atitudes (e comentários) abjetos, que nos obriga a mergulhar de cabeça num universo hostil, que se rege por leis que, enquanto adultos, deixámos de compreender (os momentos finais aludem mesmo para a existência, senão de uma hierarquia entre as crianças possuidoras de poderes sobre-humanos, pelo menos, de um entendimento comum acerca do assunto). Resumindo de forma necessariamente esquemática, é um cruzamento arrepiante entre o "Kids", de Larry Clark, e "Recreio", de Laura Wandel. O seu conteúdo, dir-se-ia, "extremo", implica que nem todos os espetadores conseguirão vê-lo, mas, isso não deve justificar que o ignoremos.
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