O cinema caminha para o fim? Entre 2020 e 2021, muitos de nós, cinéfilos e, consequentemente, cultores da sala de cinema, como templo da arte fílmica, tememos pelo desaparecimento dos espaços onde, durante tantos anos, nos congregamos para experienciar as linguagens mais díspares, os universos mais idiossincráticos (ocasionalmente, até as maiores "cagadas", mas, no contexto sacrossanto da sala escura, mesmo os resíduos mais tóxicos ganham algum encanto).
Entretanto, houve avanços e retrocessos, se vamos continuar a poder experienciar o cinema no seu habitat natural por muito tempo ou não, ninguém sabe, no entanto, essa "experiência de quase morte", intensificada pelos sucessivos confinamentos, levou muitos dos cineastas mais importantes dos nossos tempos a revisitar os seus anos formadores, com filmes que nos comunicam, afinal, como se apaixonaram pelo meio, quando e porquê.
"Retratos Fantasmas", quinta longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho, depois de "Crítico", "O Som ao Redor", "Aquarius" e "Bacurau", filia-se na mesma linhagem de "Os Fabelmans", de Steven Spielberg, "Império da Luz", de Sam Mendes e, principalmente, "Babylon", de Damien Chazelle. "Retratos Fantasmas" é, só podia ser, o resultado da cinefilia profunda do seu criador, mas, acima de tudo, é um filme sobre os espaços que nos moldam.
Para Kleber, esses espaços resumem-se, essencialmente, à casa da mãe, no Bairro de Setúbal, no Recife, e às salas de cinema que se encontravam mais próximas, entretanto, quase todas encerradas, reconvertidas em shoppings ou templos evangélicos. Dividindo-se em três capítulos, "Retratos Fantasmas" coloca o seu realizador a olhar para trás e, literal e figurativamente, a conversar com o passado que não volta nunca.
Ficamos a saber que tanto "O Som ao Redor", como muitas das suas curtas-metragens, incluindo algumas das que fez enquanto adolescente (e, consequentemente, "amador", em todos os sentidos do termo), foram inteiramente (ou quase) rodadas na sua casa de infância, com o auxílio da família e amigos, providenciando-nos uma contexto adicional para aquelas imagens que, está longe, muito longe, de se limitar a ser uma mera curiosidade.
No processo, descobrimos também um pouco mais sobre os hábitos de cinéfilo de Kleber, em muitos casos, corroborando as influências que já sentíamos nos seus filmes, mas, acima de tudo, vemo-lo a revisitar o seu passado, numa odisseia que é, em todos os sentidos, fantasmagórica, não só porque, como ele próprio sublinha, nos cruzamos com muitos falecidos no caminho (seja o Seu Alexandre, projetor local, ou o cão do vizinho, cujo latido conhecíamos de "O Som ao Redor").
É, precisamente, essa dimensão profundamente íntima (e pernambucana, porque "Retratos Fantasmas" também é um olhar sobre o Recife ao longo dos anos) que surpreende, ou melhor, arrebata. O filme de Kleber Mendonça Filho encontra-se, irremediavelmente, enraizado na cinefilia do seu autor, mas, não é preciso encarar as salas de cinema como os templos que são para sentir o êxtase que este maravilhoso monumento cinematográfico nos transmitiu.
Afinal, já todos mudámos de casa, já todos desenvolvemos algum tipo de afeto por um local que, entretanto, deixou de assistir, porventura, convertendo-se noutra coisa que nos dirá pouco ou nada. A conexão umbilical de "Retratos Fantasmas" ao Recife torna-o, tremendamente, específico e, por conseguinte, universal. Vemos as nossas vidas ali, as das pessoas que conhecemos e das cidades que amamos.
Portanto, deixem que Kleber vos abra a porta e oiçam as suas histórias, pelo caminho, talvez esbocem alguns sorrisos e, quem sabe, libertem umas lágrimas. Para nós, não há dúvidas, está aqui um dos melhores filmes da colheita de 2023.
★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos
Comentários
Enviar um comentário