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CRÍTICA - "O CRIME É MEU"


À semelhança de Quentin DupieuxWoody Allen ou Hong Sang-sooFrançois Ozon tem conseguido manter uma média de, pelo menos, um filme por ano. No entanto, o que impressiona mais é a consistência do seu cinema, desafiando sempre as nossas expectativas e providenciando-nos uma experiência que pouco ou nada tem a ver com a que vivemos no ano anterior, com uma vivacidade um savoir faire apenas seu.

Em "O Crime é Meu", a história repete-se. "Peter Von Kant", a longa-metragem de Ozon referente ao ano de 2022, encontrava-o a retrabalhar sob uma antiga referência sua, Rainer Werner Fassbinder, reinventando um dos seus mais icónicos títulos, "As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant". Mantêm-se as corres berrantes desse filme e o seu sentido lúdico (de que Ozon só abdica nos seus dramas mais contundentes), mas, a seriedade evapora-se, dando lugar a uma comicidade ligeira, mas nunca desprovida de subtexto, que arrebata e conquista.

Nos anos 30, em Paris, Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz), uma atriz que procura trabalho, é acusada de assassinar um produtor que, teoricamente, teria um papel para lhe oferecer. Auxiliada pela amiga e companheira de quarto, Pauline (Rebecca Marder), uma advogada recentemente licenciada, que não consegue que nenhuma firma lhe dê uma hipótese de provar o seu valor, Madeleine vê-se numa espiral delirante, onde o "seu crime" a catapulta para o estrelato que sempre almejou, ao mesmo tempo que, dá azo à eclosão de uma onda de feminismo exacerbado no seio da sociedade francesa.

É entretenimento popular? Certamente e Ozon renuncia quaisquer preciosismos, abraçando o tom, os ritmos, enfim, a linguagem da comédia de usos e costumes, tão frequentemente olhada de lado ou desdenhada por via de discursos condescendentes. Em "O Crime é Meu"Ozon, tendo como base a peça homónima de 1934, da autoria de Georges Berr e Louis Verneuil, desenha um mundo alternativo ao nosso, a funcionar como um espelho retorcido do nosso quotidiano, encontrando a comicidade no ridículo no quotidiano.

Para tal, Ozon recorre a um elenco tremendamente extenso, onde não faltam personagens com alguma "coisinha" a acrescentar à odisseia das nossas protagonistas, é o caso de, por exemplo, Fabrice Luchini, um procurador que vive num permanente exercício de dedução racional (diz ele...) que o conduz às mais mirabolantes conclusões, Dany Boon, ele que é o mais reconhecível representante da comédia popular francesa contemporânea, como um arquiteto a quem o homicídio titular calha mesmo muito, muito bem e, como não podia deixar de ser, Isabelle Huppert, a dar corpo a uma diva do mudo caída em esquecimento que tudo fará para retornar as manchetes!

Naturalmente, importa não secundarizar, nem Tereszkiewicz, nem Marder, dois talentos inquestionáveis a quem Ozon providencia papéis deliciosamente complexos. "O Crime é Meu" tem tendência para se "atirar ao absurdo" (faz Ozon bem) e, nesses momentos, são sempre elas quem ancora a narrativa. É, porventura, a mais divertida comédia do ano e mais uma prova de que Ozon é um dos mais versáteis autores dos nossos dias, anualmente, reunindo as mais díspares referências (quem vir "O Crime é Meu", terá motivos para se lembrar de que ele também é um imenso cinéfilo) para nos oferecer as experiências mais atípicas. Que continue assim...

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Texto de Miguel Anjos

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