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CRÍTICA - "O SOL DO FUTURO"



Quem conhece o cinema de Nanni Moretti, certamente, reconhecerá nele uma personalidade inconfundível. Goste-se mais ou menos de títulos como "Palombella Rossa""Querido Diário" ou "O Quarto do Filho", é um facto que Moretti tem uma sensibilidade só sua. Que o digam os seus filmes gentilmente autoficcionados, de natureza, simultaneamente, lúdica e melancólica, festiva e intimista, onde nos habituámos a encontrá-lo a encarnar variações de si mesmo.

Entende-se, portanto, que os cinéfilos que acompanharam o desenvolvimento da sua obra em tempo real, sintam que envelheceram com ele. No entanto, não é necessário ter estado vivo para poder vibrar com "Sonhos de Ouro", aquando do seu lançamento em sala, para nutrir um carinho difícil de verbalizar por Nanni. Ver um novo filme seu, nunca é simplesmente isso, é, acima de tudo, como reencontrar um amigo de quem temos sempre saudades.

"O Sol do Futuro", 16ª longa-metragem de Nanni, foi anunciado e promovido como o seu regresso à comédia, género que, de alguma forma, o definiu. E se, o marketing não mentiu, na medida em que "O Sol do Futuro" é, inequivocamente, uma comédia, ou melhor, uma comédia à Moretti, preenchida por todas as idiossincrasias que lhe associamos, também não é menos verdade que raramente o vimos assim, entregue a uma melancolia que, a espaços, parece inescapável.

Moretti é Giovanni (a título de curiosidade, o mesmo nome que adotou em "O Quarto do Filho" e "Minha Mãe"), um realizador que tenta entender aquilo em que o mundo se tornou. Há o jovem ator que assumiu que nunca existiram realmente comunistas em Itália (achando que os que existiam vinham da Rússia), a filha que lhe sugere escolher outro filme, que não o mesmo de sempre ("Lola", de Jacques Demy), alterando o ritual de sessão caseira familiar que só acontece de cinco em cinco anos, a mulher que, pela primeira vez, produz um filme para um outro realizador e, porque um azar nunca vem só, é logo um jovem cineasta com ideias que vão contra os princípios éticos que Giovanni encara como parte inalienável da criação cinematográfica e, claro, a ascensão das plataformas de streaming, que procuram subjugar a criação artística aos algoritmos, "esvaziando" o cinema e o espetador.

Giovanni encontra-se a filmar, precisamente, "O Sol do Futuro", retrato da diluição do casamento de dois militantes do Partido Comunista Italiano (PCI), em 1958, mais especificamente, no momento em que os tanques soviéticos esmagaram a Revolução Húngara. Quando o PCI escolhe posicionar-se ao lado da União Soviética, ela (Barbora Bobulova) vê-se moralmente impossibilitada de continuar no Partido, mas, para ele (Silvio Orlando) que, no fundo, até acredita que a esposa tem razão, a questão não é assim tão simples...

É o chamado "filme dentro do filme", que Moretti utiliza, alternadamente (embora, "paradoxalmente" possa ser mais adequado), enquanto "viveiro" de material cómico e como possível prenúncio de tragédia (vejam-se os momentos em que a mulher de Giovanni, Paola, fala sobre "O Sol do Futuro" como algo intimidante, assustador). Em comum, o filme de Moretti e o de Giovanni têm um título que remete, imediata e automaticamente, para um sentimento de otimismo, no entanto, rapidamente entendemos que esse otimismo (se é que existe) é direcionado para o passado.

No entanto, a melancolia profunda de "O Sol do Futuro" que é, em tudo e por tudo, um primo muito pouco distante do Moretti anterior, "Três Andares", além de embalada por um sentido de humor contagiantemente ácido, naturalmente, ancorado angústias e neuroses tipicamente "morettianas", é literalmente interrompida, quando o Moretti brincalhão dos tempos de "Palombella Rossa" mete a cabeça de fora.

Como assim? Pois bem, se títulos como "Habemus Papam""Minha Mãe" e "Três Andares", assumiam um registo clássico ou classicista do melodrama antiquado, ainda que nunca ultrapassado, "O Sol do Futuro" recupera o espírito dos primeiros Moretti, que iam beber inspiração ao cinema de autor italiano dos anos 60 (Paolo e Vittorio TavianiBellocchioFerreriFelliniPasoliniBene, entre outros), mas também pela Nova Vaga Francesa, pelo Free Cinema em Inglaterra, para criar objetos ousados e inconformados que, de uma assentada, prefiguravam um novo cinema e um novo mundo.

Em "O Sol do Futuro"Moretti trilha esse caminho novamente, partindo do desencanto para regressar ao idealismo, respondendo à depressão com utopia. É, simultaneamente, galvanizante e deprimente como "O Sol do Futuro" abraça a sua condição fílmica, libertando-se das garras cruéis da realidade para criar um novo universo, exclusivo ao cinema, onde, se calhar, tudo acaba bem.

Acima de tudo, é belo, desmesuradamente belo, como tudo nesta jóia de filme, meio-moderno, meio-antiquado, meio-cómico, meio-antiquado, onde se sente (e muito) o espírito singularíssimo de um autor que não abdica de um cinema que renuncia gavetas e algoritmos.

Dir-se-ia que "O Sol do Futuro" é o filme de um comunista utópico, o que, para alguns, pode parecer um pleonasmo e, se calhar, até é, mas, que o novo mundo de Moretti é bonito, lá isso é.

★ ★ ★ 

Texto de Miguel Anjos

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