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"O Poder da Palavra", de Yvan Attal


O cinema francês está bem e recomenda-se. Não é novidade para ninguém que tenha acompanhado as múltiplas produções gaulesas que temos conseguido encontrar nas salas portuguesas ao longo das últimas semanas., no entanto, o lançamento de “O Poder da Palavra” assume-se como um acontecimento particularmente interessante. Porquê? Pois bem, porque à semelhança de alguns títulos recentes como “Ervas Daninhas” ou “As Boas Intenções”, começa a evidenciar-se um pequeno “movimento”, digamos assim, interessado em utilizar a linguagem da comédia popular para abordar temas do nosso “aqui e agora”, convertendo narrativas que tipicamente encaramos como meros “nacos” de entretenimento descartável em ferramentas para repensar o mundo em que vivemos.

Aqui acompanhamos Neïla (Camélia Jordana), uma jovem de origem argelina, que decide tornar-se advogada, inscrevendo-se para isso na Universidade Panthéon-Assas, em Paris. Contudo, certo dia, chega atrasada à aula do controverso professor Pierre Mazard (Daniel Auteuil), e o mesmo repreende-a fortemente, com recurso a múltiplos e chocantes insultos racistas. Acontece que, os restantes alunos filmam o sucedido e partilham-no nas redes sociais, motivando um motim digital que pede a demissão de Mazard. Com uma reunião potencialmente problemática com o Conselho Disciplinar da instituição à porta, o presidente da faculdade convence o docente caído em desgraça que a única maneira de escapar ao despedimento a que parece condenado, é mesmo treinar a aluna que maltratou para uma competição de oratória, um processo que motivará bastantes mudanças comportamentais e ideológicas em ambos.


Convenhamos, há um elemento de fórmula no meio de tudo isto (os dois indivíduos que começam por antipatizar, mas rapidamente desenvolvem um respeito mutuo que, em última instância, os conduz a alterarem o seu caráter), contudo, o também ator Yvan Attal encena tudo isto com uma inteligência de tal modo refinada que nem importa que consigamos antever os desígnios da narrativa. Afinal, os diálogos, abrilhantados por um sentido de humor irreverente e politicamente incorreto, são absolutamente brilhantes, especialmente, quando declamados por atores com o talento e o carisma de Camélia Jordana e Daniel Auteuil, e Attal revela-se mesmo capaz de construir uma película que cruza humor com comentário social, com uma precisão e acutilância notável, tão aparentemente leve e discreto como profundamente sincero. Isto tudo, sem nunca sentir a necessidade de estereotipar as suas personagens, nem estupidificar o espetador. “O Poder da Palavra” é cinema classicista para os tempos modernos. É caso para dizer que no fim, até comove sem darmos por isso.


Título Original: “Le Brio”
Realização: Yvan Attal
Argumento: Victor Saint Macary, Yaël Langmann, Yvan Attal, Noé Debré
Elenco: Daniel Auteuil, Camélia Jordana, Yasin Houicha
Duração: 95 minutos
País: França/Bélgica

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