Avançar para o conteúdo principal
"Equipa de Assalto", de Dan Krauss


Aquando do lançamento de “The House That Jack Built”, a Leopardo Filmes organizou um pequeno ciclo (constituído por oito longas-metragens que iam de Tarantino a Haneke), intitulado “Uma História da Violência (No Cinema): Alguns Exemplos”. Estávamos em janeiro e ainda só conseguíamos especular acerca dos filmes que mais interesse suscitavam em nós nos próximos meses, logo não suspeitávamos sequer da improvável importância dessa mostra, no entanto, à medida que vamos folheando as últimas páginas de 2019, apetece-nos perguntar o seguinte: terá este sido o ano da violência? Enfim, convenhamos, que uma pergunta assim tão generalista não pode nunca obter uma resposta concreta e credível, contudo, parece-nos impossível ignorar a forma perversa como as mais variadas narrativas que temos acompanhado, vão sendo contaminadas pelas sementes muito cruéis da brutalidade. Pensemos na sociedade apática que levou Arthur Fleck à loucura em “Joker”, na comunidade nazi que acolhia adolescentes marginalizados e empobrecidos e depois os introduzia às suas crenças odiosas em “Skin: História Proibida” ou nos homens que concluíam que a única saída para as condições financeiras em que se encontravam aprisionados em “Na Sombra da Lei” (e podíamos mencionar “O Culto de Manson”, “Midsommar: O Ritual” ou “Parasitas”).

Acontece que, as atrocidades que cometemos não existem num vácuo, são produtos de um contexto social que as incentiva ou, pelo menos, perdoa, e a primeira longa-metragem do americano Dan Krauss (baseada no documentário homónimo que assinou em 2013), “Equipa de Assalto” vem denunciar isso mesmo. Em causa, estão as práticas e cenários que convencem jovens inocentes a perpetrar atos de violência profundamente desumanos, retratando a metódica iniciação de um soldado americano (Nat Wolff) à perturbador a rotina de uma zona de guerra. O foco da história são os infames homicídios do distrito de Maywand, onde um sargento (Alexander Skarsgård) ordenou os soldados que faziam parte do seu pelotão a assassinar indiscriminadamente civis em Kandahar. Tendo como plano, encenar uma situação de ataque de maneira a encobrir os crimes. Krauss mantêm-se fiel aos factos que compõem o caso verídico, escolhendo centrar a narrativa em torno do olhar sofredor do protagonista Andrew Briggman, um patriota com uma consciência que não lhe permitirá pactuar com o sucedido e que, aliás, começa a suspeitar do caminho imoral em que vai ser lançado com a chegada do Sargento Deeks, que contrariamente ao seu predecessor aparenta não ter qualquer interesse em estabelecer uma relação com os locais, preferindo concentrar-se em erradica-los um a um.


Deeks é um ser sinistro. Um sociopata que utiliza um patriotismo oco para esconder os seus impulsos sádicos. Inicialmente, pensamos que se trata de um cliché de um sargento cinematográfico, quando o vemos apresentar-se aos soldados com um discurso austero, mas essa imagem rapidamente se dissipa quando começamos a vê-lo a apelar aos mais bárbaros desejos dos jovens que servem a seu comando, argumentando que os assassinatos que vão cometendo não só são inteiramente justificados, como farão deles “heróis” dignos de entrar em livros de história. Deeks assume os seus pecados como atos morais, portanto, e ainda procura oferecer-lhes um tom lúdico, proferindo comentários como “boa caçada” ou “quem está pronto para se divertir” antes de qualquer operação.

Krauss transforma o restante filme numa espécie de cruzamento perverso entre um melodrama sobre a inocência perdida e um filme de terror, a contemplar a descida aos infe rnos daqueles jovens que, utilizando as suas próprias palavras, “passaram a ser capazes de matar qualquer pessoa”, acabando por “desaguar” no território do conto moral, que Krauss trabalha com rigor e delicadeza, providenciando suficiente importância ao labor dos atores e prestando atenção a cada um dos seus movimentos, palavras e silêncios. É caso para dizer que temos aqui um sucessor digno de títulos como “Máquina Zero” ou “Estado de Guerra”, olhares desencantados sobre o quotidiano cruel de quem adormece e acorda num cenário dantesco que pode nunca conseguir abandonar.

Texto de Miguel Anjos


Título Original: “The Kill Team”
Realização: Dan Krauss
Argumento: Dan Krauss
Elenco: Alexander Skarsgård, Nat Wolff, Adam Long

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)