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"Projeto Gemini", de Ang Lee


À medida que envelhecem e começam a entender que os seus dias áureos se encontram no passado, múltiplos autores resolvem encenar narrativos centrados na obsolescência. Olhares desencantados sobre pessoas que sentem que o mundo as vai deixar para trás. Martin Scorsese fê-lo no vindouro “O Irlandês” (brevemente na Netflix), Pedro Almodovár repensou a sua existência no contundente “Dor e Glória” (ainda em exibição nos cinemas portugueses) e até Darren Aronofsky reavaliou o ego no alegórico “Mãe” (quem quiser descobrir ou redescobri-lo pode fazê-lo em homevideo). De certa maneira, Ang Lee percorre o mesmo caminho em “Projeto Gemini”, retomando o mesmo conceito que parece ocupar o centro de todas as longas-metragens mencionadas. Isto é, uma personagem que vê o seu quotidiano ameaçado pelo surgimento de uma qualquer situação que a força a confrontar as convulsões do seu passado. No entanto, Lee introduz um elemento paradoxal no que aparentava ser uma equação simples…

Acontece que, “Projeto Gemini” é uma experiência fílmica de olhos postos no futuro. Porquê? Pois bem, porque Lee escolheu filmar este thriller num novo formato que somente ele parece corajoso o suficiente para aplicar numa produção desta envergadura (custou uns dispendiosos 138 milhões de dólares). É o chamado high frame rate (adequadamente acompanhado pelo 4K e o 3D), que lhe permite captar 120 fotogramas por segundo (mais do que o olho humano consegue apanhar) em vez dos habituais 24, resultando naquilo que muitos apelidam de hiper-realismo. Aliás, segundo Lee, a finalidade é mesmo conseguir remover a consciência do artificio da mente atenta do espetador. Como? Idealizando cenários fantasiosos e burlescos e concretizá-los com a acutilância de um documentário, no processo, ultrapassando a última fronteira que o cinema americano ainda ambiciona derrubar: transformar as premissas absurdas dos seus blockbusters em imagens inquestionavelmente reais. Tornar o público incapaz de dizer que “O Resgate do Soldado Ryan”, “Estado de Guerra” ou “Censurado” lhe parecem mais crus que o “Projeto Gemini”.


Will Smith é Henry Brogan, porventura, o melhor assassino profissional do mundo, cujas capacidades lhe permitem desempenhar tarefas tão ridículas e, convenhamos, "porreiras" como abater um alvo que viaja num comboio a alta velocidade que se encontra prestes a entrar num túnel (quem tiver problemas com filmes que utilizam cenários francamente rocambolescos para justificar os talentos sobre-humanos das suas personagens, não vai apreciar a loucura contagiante de “Projeto Gemini”). No entanto, depois de providenciar os melhores anos da sua vida ao Departamento de Defesa do governo norte-americano, Brogan planeia uma reforma antecipada (acaba de completar 51 primaveras). Acontece que, à semelhança do que costuma suceder a estas anti-heróis hollywoodescos (“Logan” e “Rambo: A Última Batalha” também levantavam essa questão), os atos sanguinolentos que comete diariamente começaram a pesar-lhe na consciência. Especialmente, quando um velho companheiro do exército lhe oferece uma informação perturbadora: o último homem que o Estado o incumbiu de eliminar, não era um bioterrorista estrangeiro, mas sim um cientista que sabia demasiado acerca de experiências governamentais altamente confidenciais…

Infelizmente para ambos, essa conversa é intercetada por um drone que os converte em “pontas soltas” ou, aplicando o termo que o vilão interpretado por Clive Owen emprega, “danos colaterais” no contexto de uma operação que necessita de ser infalível. Passadas poucas horas, o cadáver de um está no fundo do mar e uma equipa de homens armados são enviados até à remota residência de Henry, que não tem problemas, nem dificuldades em livrar-se deles “à lei da bala”. Contudo, com a cabeça a prémio e sem possibilidades de confiar nos membros do seu departamento (como tende a suceder em títulos do género, conceitos como a confiança e a lealdade são fundamentais para o desenvolvimento da narrativa), Henry vê-se forçado a unir esforços com uma agente inicialmente enviada para o vigiar (Mary Elizabeth Winstead) e um velho amigo (Benedict Wong), para tentar encontrar uma maneira de se salvar. Mas, não sem antes se aperceber que existe uma estranha figura a seguir os seus passos: um clone seu, com 25 anos de idade e as mesmas habilidades que ele na hora de aniquilar outros seres humanos.


Porventura, será importante mencionar que o argumento de “Projeto Gemini” foi escrito em 1997, por David Benioff (entretanto, popularizado pelo seu trabalho em “A Guerra dos Tronos”), Billy Ray (um dos mais consistentes guionistas em Hollywood, tendo escrito um pouco de tudo e sempre muito bem, sendo o thriller “Capitão Phillips” e o festival de sanguinolência “Operação Overlord”, dois bons exemplos disso mesmo) e Darren Lemke (um nome oriundo das longas-metragens apontadas a um público infantil), contudo, acabou por nunca avançar devido às limitações da tecnologia, que não permitiam concretizar o rejuvenescimento de um ator de forma minimamente credível (embora, existam preconceitos que tendem a associar o cinema de animação unicamente a uma certa ideia de entretenimento para crianças, seria curioso ver um filme como este nesse formato), talvez, por isso, os temas e ideias do filme de Ang Lee acabem por chegar fora de tempo. É que a ficção-científica cresceu e mudou desde o século passado e até já neste modelo de aventuras se tornou comum deparar com determinadas questões existenciais, e nesse debate não há como negar que “Gemini” não vem acrescentar resolutamente nada à discussão.

Como tal, a melhor maneira de o encarar é mesmo como um espetáculo escapista de entretenimento pipoqueiro, que sabe perfeitamente como utilizar o carisma de Will Smith e ainda nos oferece um par de boas sequências de ação, mesmo que pareça nunca decidir ao certo o quão a sério se quer levar, saltitando de um combate de motas cartonesco para um momento sério e pensativo. E além de Smith, numa performance dupla, também o restante elenco é extraordinariamente importante a auxiliar a narrativa a sobreviver a essas mudanças tonais constantes e radicais, que sugerem que talvez fosse necessário continuar a trabalhar no guião, nem que fosse apenas para tentar garantir uma coesão que está em falta. Essas falhas, entenda-se, não destroem “Projeto Gemini” por completo, nem lhe retiram o estatuto de uma experiência importante no avanço da exploração das novas tecnologias no cinema (independentemente das inovações que aplica continuem a ser convocadas ou não), no entanto, continua a ser um tanto notar que um autor como Ang Lee pareceu privilegiar tanto essa componente, que as problemáticas existenciais levantadas pela história se converteram única e exclusivamente num subtexto nada desenvolvido no contexto de uma fita de ação bem à moda dos anos 90 (o espírito de John Woo é sentido), que podia ter sido muito mais interessante do que realmente é.

Texto de Miguel Anjos


Título Original: “Gemini Man”
Realização: Ang Lee
Argumento: David Benioff, Billy Ray, Darren Lemke
Elenco: Will Smith, Mary Elizabeth Winstead, Clive Owen, Benedict Wong

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