A verdade tornou-se subjetiva. Afinal, basta abrir um jornal ou uma qualquer página online de um site noticioso e o mais provável é encontrar múltiplos usos do termo orwelliano “Fake News”. No entanto, com "O Bando de Ned Kelly", Justin Kurzel vem introduzir um pauzinho na engrenagem, argumentando que o mundo sempre funcionou assim. Batizando o mito como realidade, nem que seja só porque as crenças passadas de boca em boca tendam a ser mais interessantes que os acontecimentos que vão ocorrendo no quotidiano. Como argumentava o jornalista Maxwell Scott em "O Homem Que Matou Liberty Valance", “Quando um facto se transforma em lenda, imprime a lenda.”
Logo nos primeiros minutos de "O Bando de Ned Kelly", o público é confrontado com uma mensagem que o informa de que nada daquilo que se encontra prestes a ver corresponde à verdade, enquanto a narração do próprio Kelly nos garante que o filme se trata mesmo de um retrato fiel das suas vivências. Porquê investir nessa sobreposição aparentemente tão estranha? Porque expõe imediatamente as intenções de Kurzel. Pouco importa se "O Bando de Ned Kelly" é 100% verídico ou inventado, para o cineasta australiano o essencial é convocar o espírito do fora-da-lei titular e dedicar-lhe um magnum opus digno do seu caráter emblemático.
Estamos na Austrália do século XIX. A mão de obra irlandesa que ajudou a povoar o país é marginalizada pela aristocracia britânica, inspirando o aparecimento de um sentimento de ódio confundido por justiça em Ned. Aliás, quando ainda em criança (uma revelação chamada Orlando Schwerdt) observa secretamente a mãe (arrepiante Essie Davis, aqui a encarnar uma figura maternal tão fascinante como aquela a que deu vida no já clássico "O Senhor Babadook") a utilizar favores sexuais para convencer o Sargento O’Neill (Charlie Hunnam, brilhantemente seboso) a não revocar a licença da sua taberna, entendemos logo que a sua perceção sobre homens de farda se começa a formar. Uma situação que se agravará progressivamente devido à relação perversa que mantém com essa mãe dominante e possessiva que lhe manipulará a personalidade segundo os seus caprichos extremamente perversos.
Essa influência e a de terceiros como o tenebroso Harry Power (Russell Crowe, na sua melhor composição em muitos anos) a quem é confiado/vendido pela mãe, vão moldar Ned, iniciá-lo à violência e levá-lo até ao ponto de não retorno que o condenou a uma morte prematura. Certos segmentos do público, desprezaram a maneira como Kurzel se recusa a seguir as normas correntes da biografia cinematográfica, sempre convencional, certinha e sempre pronta a entregar-nos muitas certezas morais e históricas. Ora, o realizador australiano, que reconhecemos de objetos ousados como “The Snowtown Murders” e “Macbeth”, marimba-se para tudo isso, concebendo uma narrativa que descarta quaisquer preocupações de correção histórica, afinal, se aceitamos que a nossa perceção do passado vai sendo constantemente reescrita, reenquadrada e repensada (sem esquecer que, seja como for, nestas coisas, a última palavra pertence sempre aos vencedores), porque raio nos há de importar que os filmes que vemos sejam transposições exatas de acontecimentos verídicos?
Não, o que interessa a Kurzel é fazer um filme que consiga, simultaneamente, honrar a importância simbólica de Kelly na Austrália e retratá-lo de forma empática, à semelhança daquilo que já acontecera na sua primeira longa-metragem enquanto cineasta, o supracitado "The Snowtown Murders", Kurzel não vê no seu protagonista uma encarnação do puro mal, pelo contrário, a raiva de Kelly é um produto da sua educação, saltitando entre a malícia da mãe e a crueldade das forças da lei opressoras e corruptas, que nunca perdiam uma oportunidade para abusar do seu poder, a certo ponto, o protagonista concluiu que ninguém teria paciência de suportar aquilo que lhe foi imposto, não parecendo, a escolha de palavras é tudo menos acidental. Não é que ele necessitasse de derramar sangue, devido a um qualquer impulso psicótico que o assombrava na sua intimidade, simplesmente se tornou impossível continuar a aceitar os maus tratos massacrantes de quem o rodeava, não admira, portanto, que muitos australianos (e não só) vejam nele um símbolo heroico, alguém que se recusou a continuar a acatar as ordens (e os abusos) de quem se deixava guiar pelo sadismo ou, porventura pior, pela indiferença perante o próximo.
George McKay, o fabuloso intérprete que dá corpo ao Ned Kelly adulto terá dito numa entrevista recente que o objetivo de todos os envolvidos era fazer o filme que o protagonista tivesse feito e o resultado é um épico operático, ousado e desprovido de medos ou preconceitos, que tem tanto de crónica de iniciação aos horrores da humanidade, como de desconstrução sagaz da masculinidade e da psique masculina, abrilhantado por uma realização cuidada e meticulosa, com um olhar muito atento à composição estética de cada plano, que dá um toque telúrico ao todo (qualidade que já reconhecíamos ao "Macbeth" de Kurzel), uma banda-sonora atmosférica (nos antípodas do western clássico, onde teoricamente se enquadraria uma película como esta) e um elenco de exceção, capaz de imbuir cada personagem com uma personalidade muito específica, sem nunca reduzir ninguém a uma mera caricatura. Ned Kelly já teve direito a muitos filmes (incluindo um francamente embaraçoso com Mick Jagger), mas nenhum que se compare com este...
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Texto de Miguel Anjos
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