Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "A PIOR PESSOA DO MUNDO"

Joachim Trier é o realizador do momento. Dificilmente alguém conseguiria antecipar que o autor de "Reprise" (podem encontrá-lo no catálogo da Netflix), "Oslo, 31 de Agosto", "Ensurdecedor" e "Thelma" (todos disponíveis na Filmin) se tornaria na nova coqueluche do panorama cinematográfico europeu, especialmente porque chegou mesmo a parecer que havia um contingente de detratores que se recusavam a conceder-lhe entrada no panteão a que pertencem alguns dos seus contemporâneos, no entanto, o sucesso nas bilheteiras de todo o mundo (até os americanos tipicamente hostis perante filmes falados em idiomas estrangeiros parecem estar a celebrá-lo), nas cerimónias de prémios e, acima de tudo, o frenesim online não mentem. "A Pior Pessoa do Mundo", em boa hora, colocou Trier nas bocas do mundo. Afinal, como costuma dizer o povo, "custou, mas foi".

Nele, acompanhamos Julie (Renate Reinsve numa daquelas performances eletrizantes que é impossível esquecer) ao longo de quatro anos (devidamente divididos em doze capítulos, um prólogo e um epílogo), durante os quais experienciará uma crise existencial. Ela encontra-se prestes a completar os seus 30 anos, contudo, ainda não conseguiu atingir a estabilidade social, sentimental e profissional que ambicionava, e sente-se cada vez mais ansiosa por causa de tudo isso. O seu envolvimento com Aksel Willman (o sempre extraordinário Anders Danielsen Lie, ator fetiche de Trier), um desenhador de banda-desenhada quinze anos mais velho do que ela, começa por trazer alguma estabilidade à sua vida, mas Julie não demora a colocar a afeição que os une em causa, especialmente depois de conhecer Eivind (estupendo Herbert Nordrum) com quem sente uma imediata química, bem como um à-vontade que não encontra com Aksel...

A meio-caminho entre François Truffaut (da voz off à organização em capítulos, mimetizando o romanesco literário, encontramos muito do cinema do autor de "A Noite Americana", que Trier sempre assumiu como um dos seus "cineastas de cabeceira") e Woody Allen (ainda o mais importante e influente cronistas das neuroses urbanas, por mais que haja muita gente que o queira "cancelar"), "A Pior Pessoa do Mundo" arrasta-nos para um labirinto de amor e morte, desejos e erros, onde é mais ou menos impossível não reconhecermos também um pouco de nós próprios. Há quem tenha aproximado aquilo que Trier faz aqui da tradição clássica da comédia romântica, e se, tal ideia não é completamente descabida, até porque o noruguês é um cinéfilo confesso, acaba por não fazer jus a este épico quotidiano, cuja narrativa vai muito além da clássica história de amor, porque o importante é retratar a odisseia caleidoscópica de Julie, à medida que se vai autoconsciêncializando de quem é, do que poderá querer e de como tudo na vida é mais volátil do que parece à primeira vista. Neste contexto, os relacionamentos amorosos são fundamentais, mas nunca verdadeiramente perfeitos, porque nada na vida se pode assemelhar aos finais felizes que Hollywood nos tem andado a vender.

Simultaneamente, cru, romântico e existencialista, "A Pior Pessoa do Mundo" consegue ser poético e comovente, sem necessitar de maneirismos floreados, nem sentimentalismos choramingas. Trata-se do raro filme que entende a complexidade da existência humana e nem tenta resolver os seus mistérios, nem se lamenta acerca das suas amarguras, a Trier interessa partilhar os seus pensamentos, desejos, erros, frustrações e passos em falso, sabendo que os receberemos de braços abertos porque também são os nossos. No final, saímos com lágrimas nos olhos, impotentes para sair antes de todas as luzes se ligarem e o genérico terminar. Tal como Aksel diz, a certo ponto, também nós não queremos que o filme se torne apenas numa memória, queremos continuar naquele mundo de Julie. Se existe um filme mais bonito em exibição, não nos passou pelos olhos...

★ ★ ★ ★ ★

Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)