Aquando da passagem de "A Filha Perdida" pela passada edição do Festival de Veneza, onde venceu o prémio de Melhor Argumento, a realizadora e argumentista Maggie Gyllenhaal, que conhecemos de uma longa carreira enquanto atriz, confessou ter vivido uma experiência revelatória ao ler o romance de Elena Ferrante que se encontra na base desta sua primeira longa-metragem. Como assim? Pois bem, diz Gyllenhaal que sempre lhe pareceu que existiam verdades secretas sobre o universo feminino acerca das quais ninguém se atrevia a falar, daí que a franqueza com que Ferrante abordava as pulsões íntimas da condição feminina a tenha deixado desconcertada. Assim, nasceu a vontade de levar as palavras da autora italiana ao cinema, neste belíssimo filme que parece comprovar que os talentos de Gyllenhaal estão longe de se esgotar na representação.
Encontramo-nos na Grécia contemporânea, onde Leda Caruso (interpretada por Olivia Colman e Jessie Buckley em momentos distintos da sua vida), uma professora de Literatura Comparada à beira dos 50 anos, procura passar umas férias relaxantes, longe de constrangimentos laborais ou familiares (cedo entendemos que a sua relação com as filhas e o ex-marido não é exatamente ideal, embora nunca cheguemos a receber muitos detalhes acerca da sua situação atual). No entanto, a chegada de uma numerosa, barulhenta e conflituosa família greco-americana vem perturbar o seu sossego. Ao mesmo tempo, Nina (Dakota Johnson), uma jovem mãe pertencente a este clã, e Elena (Athena Martin), a sua filha pequena, captam a atenção de Leda e atiram-na para uma espiral de memórias dolorosas que pairam sobre ela como fantasmas que se recusam a ser exorcizados.
Gyllenhaal tem olhos de cineasta e prefere a sugestão, o não-dito e o jogo dos atores para elaborar atmosferas e deixar que sejamos nós a adivinhar e preencher o que fica em branco ou em suspenso, em vez de explicar tudo em pormenor. "A Filha Perdida" é, aliás, pouco convencional num sentido estritamente narrativo, procurando comunicar com o espetador primeiramente por via das sensações que desperta em nós, nesse sentido, é apetecível comparar a realização de Gyllenhaal ao trabalho do italiano Luca Guadagnino, outro sensualista habituado a transmitir-nos o inexpressável por via do cruzamento das imagens e som. Nesse processo, é fundamental a contribuição da veterana diretora de fotografia Hélène Louvart, cujas imagens sedutoras nos vão enredando numa teia de incidentes crescentemente mais insidiosos.
Sendo Gyllenhaal uma atriz, é também compreensível e francamente expectável que "A Filha Perdida" escolha sempre dar primazia ao trabalho dos atores, aqui incumbidos de expressar as emoções que as personagens, por incapacidade ou vergonha, não conseguem articular. Colman e Buckley são absolutamente notáveis, providenciando-nos diferentes faces de uma mulher dividida entre aquilo que a sociedade espera dela e os seus próprios desejos, se dúvidas houvesse de que nos encontrávamos perante duas das maiores atrizes da contemporaneidade (britânicas ou não), bastaria vislumbrar um par de sequências de "A Filha Perdida" para as colocar de lado, mas o filme pertence também aos secundários, seja a Dakota Johnson, cuja presença enigmática empresta muito ao filme, ou Peter Sarsgaard, a meio caminho entre o charme e o desmazelo, que oferece a Buckley o contraponto ideal para aquele que é, quiçá, o momento de maior vulnerabilidade emocional de todo o filme. Um portento, a ver no maior ecrã possível.
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