Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "TRÊS MIL ANOS DE DESEJO"

George Miller é um autor desconcertante, no melhor sentido, entenda-se. De facto, não é possível encerrá-lo num qualquer padrão temático ou estético, de tal modo a sua obra vai ziguezagueando por entre as mais variadas sensibilidades. Afinal, ele foi o "louco" que orquestrou o bailado de carnificina veicular que é "Mad Max: Estrada da Fúria", mas, também foi ele quem colocou os pinguins da Antártica a fazer sapateado em "Happy Feet"...

Em "Três Mil Anos de Desejo", encontramo-lo a dar largas à sua imaginação, encenando um virtuoso espetáculo formal, que é, simultaneamente, uma homenagem tocante e sincera ao ato de contar histórias.

Nele, acompanhamos a Dra. Alithea Binnie (Tilda Swinton), uma Narratologista celibatária, que se contenta (ou crê contentar-se) com uma existência puramente intelectual. Em Istambul, onde frequenta uma conferência, adquire um antigo vaso otomano. No entanto, quando tenta abri-lo, o impossível, ou melhor, o improvável sucede, um génio (Idris Elba) sai lá de dentro e oferece-lhe três desejos em troca da sua eventual libertação.


Enquanto estudiosa de história e mitologia, a Dra. Alithea Binnie tem consciência de que as histórias que envolvem génios tendem a acabar em tragédia, levando aquele ser a defender a sua posição, contando-lhe histórias fantásticas sobre o seu passado, que a convencem de que, de facto, ele não é mesmo um trapaceiro.

Tendo como ponto de partida um conto da escritora A. S. Byatt, o australiano George Miller monta uma faustosa fantasia romântica, que tanto retoma a energia contagiante de alguns dos seus títulos anteriores (principalmente, devido à opulência quase obsessiva que acompanha cada plano), como ressuscita uma tradição de melodramas "maiores do que a vida", que costumavam contar-se entre as especialidades de Hollywood (pensemos, por exemplo, num título como "Fantasma Apaixonado", de Joseph L. Mankiewicz).

Portanto, independentemente, do que se possa pensar dos filmes anteriores de Miller (bem sabemos que nem toda a gente aceita o culto quase religioso que se desenvolveu em torno da franquia "Mad Max), "Três Mil Anos de Desejo" merece ser encarado como um verdadeiro OVNI no contexto da sua obra insistentemente irregular e de um mercado pouco habituado a devaneios dispendiosos (custou aproximadamente 60 milhões). Trata-se mesmo de uma fantasia para adultos, que convida o público embarcar numa viagem sedutora, que leva o seu tempo a desenrolar uma trama que, na verdade, se resume a uma longa conversa entre duas almas solitárias que se procuram uma da outra, que se rondam e se seduzem na tentativa de encontrarem algum tipo de compatibilidade.

Que um filme tão inusitado como "Três Mil Anos de Desejo", sempre a meio-caminho entre o espetáculo barroco e o conto sobre a probabilidade (e possibilidade) do amor, exista sequer num mundo moderno que parece olhar para tais fantasias como uma excentricidade inconsequente já é milagroso, esperar que o público lhe preste atenção é capaz de ser pedir demais. Mas, que era bonito de ver, lá isso era.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)