Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "BILHETE PARA O PARAÍSO"


O que aconteceu à comédia romântica? Em tempos, Hollywood enriqueceu às custas do género, no entanto, com a "normali
zação" dos blockbusters (outrora, símbolos dos meses de verão e da quadra natalícia, mas, praticamente ausentes do calendário no resto do ano), esses filmes parecem ter desaparecido do alinhamento anual dos estúdios norte-americanos.

Em 2022, a Paramount e a Universal ousaram contrariar essa tendência, com "A Cidade Perdida" e "Bilhete Para o Paraíso", respetivamente. Duas produções à moda antiga que, no papel, pelo menos, reuniam todos os elementos que nos habituamos a associar ao género (nomeadamente, um par de estrelas charmosas, a oscilar numa dinâmica de "amor-ódio" até à conclusão, um cenário exótico e, claro, uma extensa galeria de personagens secundárias coloridas).

E se, "A Cidade Perdida", não encaixando em nenhuma definição corrente de brilhantismo, o seduziu com o seu hábil cruzamento de comédia romântica e filme de aventuras, de ritmo enérgico e contagiante e humor certeiro, então, prepare-se para a ofensiva de carisma que "Bilhete Para o Paraíso", a nova longa-metragem do britânico Ol Parker, realizador de "Agora Fico Bem" e "Mamma Mia! Here We Go Again!", que, agora, nos diverte com este conto animado e surpreendentemente comovente, capaz até de colocar um sorriso na cara do mais rezingão dos espetadores.


David (George Clooney) e Georgia (Julia Roberts) divorciaram-se há muitos anos. Não aguentam a companhia um do outro, no entanto, fazem o sacrifício de se aturam um ao outro, ocasionalmente, de modo a filha, Lily (Kaitlyn Dever), não tenha de abdicar de nenhum deles. Ela é o orgulho do ex-casal, tendo trabalho arduamente na faculdade, a ponto de garantir um futuro promissor no ramo da advocacia. Para comemorar o final do curso, Lily e Wren (Billie Lourd), a sua melhor amiga, viajam para Bali, onde a primeira conhece Gede (Maxime Bouttier), por quem se apaixona perdidamente.

David e Georgia nada sabem acerca do assunto, até ao dia em que recebem uma chamada da filha a anunciar não só o noivado com Gede, como também os seus planos de trocar a vida stressante que levava nos EUA (e, consequentemente, da carreira que David tanto desejava que ela seguisse) por uma mais calma em Bali. Os dois entram em pânico e concluem que o melhor é mesmo tentar levar a cabo um "cessar-fogo" momentâneo, rumar a Bali e tentar envenenar a relação de Lily e Gede subtilmente, de preferência, sem que nenhum deles perceba que se encontram contra o matrimónio. Mas, claro está, as coisas não correm como planeado...


Parker que, além de realizar, também é o coautor do argumento, em colaboração com Daniel Pipski, consegue o impossível, isto é, manter-nos tremendamente deleitados durante os económicos 104 minutos de "Bilhete Para o Paraíso", sem nunca nos surpreender. Estamos perante um filme em que tudo acontece consoante esperamos (e, da maneira, que prevemos), mas, a execução é de tal modo perfeita que isso acaba por não nos chatear minimamente.

Os diálogos são um mimo, equilibrando um sentido de humor sarcástico e certeiro, com uma componente melancólica subtilmente tocante, sabendo colocar David e Georgia a refletir sobre as muitas convulsões do seu passado partilhado, sem que nunca cair na lamechice, aliás, há um momento num bar, em que o vemos a desabafar com Wren, que possui uma intensidade dramática que, praticamente, desapareceu das produções mais "lúdicas" de Hollywood (e, muito mal, porque sem ela, vai-se um certo realismo, que fica bem, até na mais desvairada fantasia).

Posto isto, nenhuma comédia romântica sobrevive a um mau elenco (ou, pelo menos, a um que não consiga entrar na "brincadeira") e, felizmente, "Bilhete Para o Paraíso" não tem esse problema. Clooney e Roberts não eram assim tão bons há já vários anos (especialmente ele, que tem andado perdido nas suas tentativas falhadas de lançar uma carreira como realizador), não só porque partilham uma química inegável, mas também porque trazem uma seriedade discreta a todo o empreendimento, enquanto Kaitlyn Dever e Billie Lourd enchem o ecrã sempre que aparecem, possuindo charme, naturalidade e piada suficientes para contrariar os clichés em que as suas personagens podiam ter caído.

Com o passar dos anos, tem se tornando comum, ouvir pessoas a dizer que os filmes de entretenimento puro "já não são o que eram". Uma afirmação que, tendo o seu quê do chamado "complexo de velhinho" (a crença de que "dantes é que era"), não deixa de possuir alguma verdade. Pois bem, quem for ver o prazenteiro "Bilhete Para o Paraíso", talvez mude de opinião...

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)