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CRÍTICA - "ÓCULOS ESCUROS"


Cada novo filme de Dario Argento é um acontecimento. O lançamento de "Óculos Escuros", em particular, assinala a sua primeira longa-metragem em 10 anos, tendo desencadeado uma celebratória onda de revivalismo um pouco por todo o mundo, com instituições como o Lincoln Center, em Nova Iorque, ou a Cinemateca Francesa, a dedicarem retrospetivas ao mestre incontestável do terror italiano.

Em Portugal, no entanto, ninguém diria que um evento tão importante como o regresso de Argento se deu. Afinal, depois de uma sessão esgotadíssima no MOTELX, com a presença da protagonista Ilienia Pastorelli, "Óculos Escuros" foi atirado aos lobos, com horários tremendamente limitados em menos de 10 salas de cinema, circunscritas aos grandes centros urbanos, com a honrosa exceção de Faro. Enfim, não se arranjava uma campanha publicitária? E, porque não, dar a conhecer algumas das obras anteriores do mestre (penso em "Suspiria", "Phenomena" ou "Profondo Rosso")? É que, Argento é hoje um perfeito desconhecido das novas gerações...

Posto isto, coloquemos de lado quaisquer picuinhices que possamos ter acerca da sua chegada ao mercado, porque a oportunidade de descobrir um filme como "Óculos Escuros" no contexto sagrado da sala escura, é mesmo uma das mais irrecusáveis propostas de uma rentrée, onde não faltam opções de qualidade.


Em Roma, um eclipse bloqueia o sol, escurecendo os céus num dia quente de verão e, servindo de prenúncio para a escuridão que envolverá o futuro de Diana (Pastorelli), uma acompanhante de luxo, que é escolhida como presa por um serial killer. Ao fugir do seu predador, a jovem tem um acidente de viação que a deixa cega. Diana desperta do choque inicial, com vontade de lutar e reconstruir a sua vida, mas, o misterioso assassino persegue-a, ansioso pelo momento em que poderá terminar aquilo que começou...

Pastorelli é impecável, compondo uma personagem que se distingue pelas suas inusitadas nuances emocionais, assumindo-se, de imediato, como uma sucessora mais que digna de outras heroínas de Argento, como Jessica Harper em "Suspiria" ou Cristina Marsillach em "Terror na Ópera". Enquanto a banda-sonora de Arnaud Rebotini, o compositor habitual de Robin Campillo, é um assombro, auxiliando Argento a recuperar o charme antiquado que costumava pautar estes mistérios sanguinolentos.

Contudo, não nos enganemos, quem rouba as atenções em "Óculos Escuros" é o próprio Argento, novamente, a comprovar-se possuidor de uma vitalidade invejável. Das imagens deliciosamente estilizadas, à tensão que se constrói, passando por um par de momentos verdadeiramente arrepiantes (como uma sequência aquática, a envolver cobras), tudo é perfeito. Uma coisa é certa, quando compramos bilhete para "Óculos Escuros", não estamos meramente a confiar o nosso tempo a um tarefeiro qualquer, mas sim, a entregá-lo a um artesão em completo domínio das muitas ferramentas do seu métier.

Viva Argento!

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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