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CRÍTICA - "INTERDITO A CÃES E ITALIANOS"

Durante a campanha promocional do seu "Pinóquio", Guillermo del Toro nunca se cansou de repetir uma máxima frequentemente esquecida, "a animação é uma linguagem, não um género". De facto, tornou-se comum encontrar discursos condescendentes, maniqueístas e terrivelmente mal-informados, que insistem em convencer-nos que o cinema de animação é única e exclusivamente apontado aos mais pequenos, menosprezando ou simplesmente desconhecendo a existência de cineastas que utilizaram as ferramentas desse tipo de cinema para levar a cabo experiências ousadíssimas. Por exemplo? Pois bem, sem sair do passado recente, lembremos  "As Andorinhas de Cabul" (Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec, 2019), "Josep" (Aurel, 2020) ou "Flee - A Fuga" (Jonas Poher Rasmussen, 2021)...

"Interdito a Cães e Italianos", a segunda longa-metragem de Alain Ughetto, encaixa-se nessa honrosa linhagem. Trata-se de um empreendimento iminentemente pessoal para o seu autor, que levou uma década a completá-lo. Nele, encenasse a duríssima odisseia dos avós de Alain, Luigi e Cesira (vozes de Stefano Paganini e Ariane Ascaride, respetivamente), dos seus vizinhos, amigos e, consequentemente, da Europa, apanhada entre ditaduras sanguinolentas e duas guerras mundiais, que levaram muitos seus habitantes a imigrar, abraçando o desconhecido em busca de uma vida melhor. Foi o caso de Luigi e Cesira, que trocaram a Ughettera, em Piemonte, Itália, por França, onde acabaram por estabelecer a sua família.

Através dos bonequinhos de semblante humilde, vamos acompanhando a miséria quotidiana daquelas personagens, sempre contrabalançada por um sentido de humor delirante, que remete para a comédia italiana clássica (Dino Risi, Luigi Comencini ou Mario Monicelli não desdenhariam alguns destes apontamentos cómicos). As "provações" sucedem-se, nomeadamente, a Primeira Guerra Mundial, a gripe espanhola, o sonho frustrado de partir para a América, as mortes, os nascimentos e, acima de tudo, a necessidade de sobrevivência. No entanto, Alain Ughetto evita sempre o miserabilismo, abraçando um tom de realismo mágico, que convoca memórias saudosas de Emir Kusturica e Michel Gondry, que se funde lindamente com a comicidade inerente a este universo distorcido, a meio-caminho entre a dureza da realidade e o artifício sedutor da fábula.

Acima de tudo, "Interdito a Cães e Italianos" comove pela forma genuína como estabelece um diálogo imaginário entre Alain e a avó Cesira, entretanto, falecida, que ganha ainda mais força quando apresentado no contexto iminentemente artesanal da animação stop-motion, sempre possuidora de uma textura dramática que o digital ainda não consegue replicar. É um gesto paradoxal, porque tem tanto de pessoal e intransmissível, como de universal, pela maneira como combina a memória íntima e a memória coletiva, alcançando uma poeticidade que é constantemente elevada pela natureza afetiva do projeto.

★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

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