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CRÍTICA - "AS OITO MONTANHAS"

Anualmente, há sempre "pequenos filmes", sem orçamentos estratosféricos, nem nomes imediatamente reconhecíveis, que conquistam o estatuto de fenómenos internacionais. Em 2012, "Ciclo Interrompido" ("The Broken Circle Breakdown", no original), de Felix Van Groeningen, conseguiu exatamente isso. Obtendo bons resultados nas bilheteiras mundiais e uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

"Ciclo Interrompido" lançou a carreira de Groningen e permitiu-lhe que se tornasse num autor "papa-léguas", saltitando de país em país, sem nunca perder uma identidade visual e narrativa, estética e ética, muito característica. Depois de filmar "Beautiful Boy", nos Estados Unidos, em "As Oito Montanhas", reencontramo-lo nos Alpes Italianos. Desta vez, partilha os créditos de realização e de argumento com a esposa Charlotte Vandermeersch.

Adaptação do romance homónimo do italiano Paolo Cognetti, editado em 2016, "As Oito Montanhas" começa por nos introduzir Pietro, um rapazinho da cidade, solitário e tudo indica que pouco sociável. No verão, os seus pais abandonam Turim e levam-no a Grana, uma pequena aldeia no sopé do Monte Rosa, onde existem apenas 14 habitantes. Uma vez lá, Pietro conhecerá Bruno, a única criança da aldeia, com quem estabelecerá uma amizade inabalável. Nos anos que se seguem, as circunstâncias levam-nos a perder contacto, até que, um dia, se reencontram...

De "1900", de Bernardo Bertolucci, à "A Melhor Juventude", de Marco Tullio Giordana, o cinema italiano encontra-se acostumado a acompanhar as odisseias íntimas de personagens apanhadas na incessante voragem do tempo. No entanto, "As Oito Montanhas" difere desses títulos num pormenor crucial, é que, "1900" e "A Melhor Juventude" eram também frescos históricos, providenciando-nos retratos francamente elucidativos da sociedade italiana ao longo dos anos, enquanto que Van Groeningen e Vandermeersch pretendem focar-se somente no duo composto por Bruno e Pietro.

Evitando os lugares comuns relacionados com os contrastes entre o rural e o urbano, "As Oito Montanhas", um pouco como os melhores momentos da filmografia de Richard Linklater, é um melodrama deambulatório, que se revela lenta e discretamente como um relato meditativo e existencial, imune aos estereótipos e sublinhados bucólicos da praxe, ainda que seja de realçar o trabalho meticuloso da fotografia de Ruben Impens, sempre capaz de "emoldurar" a vastidão das paisagens (onde os nossos "heróis" parecem migalhas, o que simbolicamente também tem a sua importância).

Mas o que trazemos connosco é a ternura monumental com que os cineastas constroem esta estonteante história de comunhão, encontrando nos sempre extraordinários Luca Marinelli e Alessandro Borghi (também eles, amigos de longa data) os cúmplices ideais para levar a bom porto esta experiência sensorial de inegável impacto, a culminar num clímax que é uma avalanche de sentimentos.

É relativamente raro ver filmes exclusivamente dedicados à amizade ou que, pelo menos, a tratem como um tema central, mas, não faz mal, "As Oito Montanhas" vale por 3 ou 4.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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