Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "FALCON LAKE"


Durante os Novos Encontros do Cinema Português, decorridos no Batalha Centro de Cinema entre 6 e 7 do passado mês de junho, Pedro Borges, fundador da Midas Filmes, disse que os chamados "distribuidores independentes", pelo menos, os que se especializam em cinematografias que não a norte-americana, tentam evitar estrear filmes durante o verão. A afirmação comprova-se, quanto mais não seja, porque é óbvio e incontestável que entidades como a Alambique, a Films4You e a própria Midas têm andado mais silenciosas que o habitual, no entanto, como qualquer generalização falha por imprecisão, é que a Leopardo Filmes, de Paulo Branco, têm estreado novos títulos quase semanalmente e "Falcon Lake", a primeira longa-metragem da quebequense Charlotte Le Bon, discretamente lançado no coração da chamada silly season, é um dos acontecimentos mais singulares da paisagem cinematográfica de 2023.

Na verdade, trata-se de um dos títulos que integrou a Quinzena dos Realizadores, secção paralela do Festival de Cannes, em 2022, onde competiu pela Câmara de Ouro com títulos como "Fogo-Fátuo""A Água""Os Cinco Diabos" ou o eventual vencedor "Uma Bela Manhã". Agora, podemos, finalmente, experienciar a odisseia de Bastien (Joseph Engel), de 13 anos, e Chloé (Sara Montpetit), de 16, jovens que passam as férias de verão com as suas respetivas famílias numa cabana à beira de um lago no Quebeque, que ela acredita estar assombrado por uma fantasmagórica lenda de que mais ninguém ouviu falar. Apesar do intervalo de idades entre eles, os dois adolescentes formam um laço singular e Bastien não descansará até conquistar o coração da enigmática Chloé.

Filmado em 16mm, a natureza tátil das imagens que compõem "Falcon Lake", como fotos envelhecidas pela passagem do tempo, é apenas um dos elementos que tornam o seu visionamento numa experiência tão nostálgica. Le Bon captura lindamente o turbilhão de sensações e sentimentos que invadem o corpo, mente e alma dos seus protagonistas adolescentes, dedicando cada cena, cada plano a imortalizar as suas alegrias, angústias e o que, de resto, fica pelo meio. Tudo isto, acompanhado por uma atmosfera fantasmática que, juntamente com o relativo desinteresse de Le Bon em encenar uma narrativa convencional, aproxima o seu filme de uma certa ideia de transcendentalismo, não estamos aqui, necessariamente, para seguir uma série de acontecimentos, mas sim, para folhear as páginas do livro de memórias de alguém. Nesse sentido, "Falcon Lake" encaixaria perfeitamente na definição de "Madalena de Proust".

É um filme impossivelmente íntimo, de ambiência inebriante, que anuncia Le Bon como uma voz que importa ter em conta, bem como confirma o estatuto de "promessa" do seu protagonista, Joseph Engel (reconhecemo-lo de "Um Homem Fiel" e "A Cruzada", ambos de e com Louis Garrel), ao mesmo tempo que, lança Sara Montpetit, uma revelação absoluta. Uma das mais recomendáveis estreias da época estival, esperemos que não se perca no meio do ruído dos blockbusters típicos do período.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)