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CRÍTICA - "A FUGA DOS LULUS"


"Amor ou Consequência" ("Jeux D'enfants") colocou o nome de Yann Samuell nas bocas do mundo (e juntou Guillaume Canet e Marion Cotillard, possivelmente, o casal mais mediático do cinema francês). Em Portugal, nunca o reencontramos, ainda que "La Guerre des Boutons", de 2011, tenha mobilizado imensos gauleses às salas. Esta semana, o seu cinema volta a ocupar um lugar no circuito comercial lusitano, chama-se "A Fuga dos Lulus", "La Guerre des Lulus" no original, baseado na banda-desenhada homónima de Régis Hautière e Hardoc, que permite ao cineasta regressar ao seu tema predileto, a infância.

Lucas (Tom Castaing), Luigi (Mathys Gros), Lucien (Loup Pinard) e Ludwig (Léonard Fauquet) formam os Lulus. Órfãos, residentes na Abadia de Valencourt, comanda pelo Abade Turpin (François Damiens a fazer de François Damiens, isto é, a apresentar um misto característico e inconfundível de um charme patusco com um invulgar toque de intensidade). Um dia, a 1ª Guerra Mundial bate à porta da Abadia, levando a cidade a ser evacuada, no entanto, por acidente, os Lulus ficam para trás. Consequentemente, embarcam numa odisseia, por entre uma França decadente e ensanguentada, rumo à Suíça, onde Ludwig ambiciona encontrar a mãe. Pelo caminho, deparam com inimigos, mas também com os mais inusitados aliados...


Samuell encena o périplo deste quarteto, que cedo se torna num quinteto (quem vir o filme, logo saberá como e porquê), com uma verve classicista que impressiona. Num panorama saturado de "filmes familiares" doces e desprovidos de qualquer "brutalidade", "A Fuga dos Lulus" é um regresso aos tempos em que o cinema apontado aos mais pequenos não tinha medo de deixar que a dureza da realidade se intrometesse na utopia de um certo modelo de fábula. É, portanto, um conto iniciático, em que aquelas crianças vão ser obrigadas a conhecer o pior da humanidade, mas, também o melhor, porque se as situações limite revelam quem somos verdadeiramente, então, nalguns casos, tanto convocam o mal como o bem.

Nesse sentido, Samuell torna o seu filme numa reflexão sociopolítica, que levanta questões demasiado pertinentes. O que é um inimigo? O que é uma fronteira e que significado acarreta? O que é um estrangeiro? Qual a posição das mulheres em tempo de guerra? Tudo com uma ligeireza de toque que impede "A Fuga dos Lulus" de se tornar num sermão, pelo contrário, Samuell consegue ser divertido, sem perder de vista a seriedade do assunto, especialmente, porque teve a sorte de encontrar um punhado de atores de palmo e meio que conseguem equilibrar comédia e tragédia com muita eficácia. Há muito que não se via um "filme familiar" como "A Fuga dos Lulus" e, por aqui, já sentíamos saudades.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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