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CRÍTICA - "MAY DECEMBER - SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO"


O cinema norte-americano é frequentemente menorizado. O domínio hegemónico das aventuras de super-heróis e os avanços predatórios das plataformas de streaming, tendencialmente, interessadas em fomentar a conformidade nos seus "subscritores", recorrendo aos malfadados algoritmos para dificultar a vida a quem gostava da ideia de expandir os seus horizontes, naturalmente, não ajudaram, no entanto, não adianta fingir que a atitude anti-Hollywood é uma novidade, afinal, na década de 70, quando alguns críticos europeus tiveram a ousadia de defender as virtudes de um título como "Tubarão", de Steven Spielberg, houve quem os acusasse de cederem à tentação do imperialismo norte-americano...

Enfim, não caíamos em generalizações maniqueístas, faz-se grande, grande cinema por aqueles lados, mesmo num mundo pós-Marvel e pós-Netflix (honra lhes seja feita, ocasionalmente, ambos já produziram objetos bastante admiráveis). "May December - Segredos de um Escândalo" é um exemplo modelar disso mesmo. Trata-se da décima longa-metragem de Todd Haynes, o prodigioso autor de, por exemplo, "Longe do Paraíso""I'm Not There - Não Estou Aí" e "Carol", que nunca falha na hora de nos arrebatar, quanto mais não seja, porque nunca conseguimos prever, concretamente, qual será o seu próximo passo.

Em "May December" cabe todo o cinema de Haynes. Está lá a sua cinefilia, em particular, o seu gosto pelo melodrama clássico (a banda-sonora, deliciosamente, imponente é "importada" do "The Go Between - O Mensageiro", de Joseph Losey), mas, também lá encontramos a sua faceta historicista, motivada por uma vontade muito clara de conceber filmes que interrogam a realidade, que retratam o passado dos EUA, com as nuances que os livros de história nem sempre se lembram de incluir.

À semelhança do predecessor "Dark Waters - Verdade Envenenada""May December" tem como base um caso verídico, nomeadamente, o escândalo que se gerou em torno de Mary Kay Letourneau (1962-2020), uma mulher de 34 anos, que iniciou um relacionamento amoroso com um rapaz de 12, com quem acabou por casar e ter dois filhos. Haynes e os argumentistas Samy Burch e Alex Mechanik utilizam esse episódio somente como um ponto de partida, permitindo-lhes escapar às amarras de uma realidade que ninguém conhece inteiramente.

Assim, Julianne Moore é Gracie Atherton (dupla de Letourneau), de 59 anos, uma atriz que trocou a azáfama de Hollywood pela serenidade de Savannah, na Georgia, onde vive com o marido, Joe (Charles Melton), de 36 anos, o marido e pai dos seus filhos. Um dia, Elizabeth (Natalie Portman), uma atriz que se prepara para interpretar Gracie num filme independente, aparece em Savannah para conhecer a mulher a quem dará vida no grande ecrã. À chegada, depara-se com um ambiente, aparentemente, pacato, refletindo uma comunidade coesa, onde todos se conhecem e nutrem algum carinho pelo próximo... Rapidamente, entenderemos que não é bem assim, que Grace é uma rainha, mas, o seu trono fica no centro de um castelo de cartas e que muitas das pessoas de Savannah a olham de lado (nos primeiros minutos do filme, um churrasco de fim-de-semana é interrompido, quando alguém entrega uma caixa de fezes, nada de problemático, segundo Gracie é um acontecimento comum, dir-se-ia, rotineiro por ali).

O cinema de Haynes procurou sempre aproximar-se de personagens incomuns, atravessadas por pulsões contraditórias, por vezes, em contextos sociais violentos, onde nada é, necessariamente, o que parece e as pessoas tendem a não conseguir manter-se fiéis aos valores que dizem defender. "May December" encaixa lindamente nessa linhagem. Elizabeth e, principalmente, Gracie encerram em si qualquer coisa de enigmático. Ambas exibem uma conduta predatória e nunca se coíbem de manipular os outros para conseguir o que querem, no entanto, HaynesBurch e Mechanik deixam que o mistério permaneça no ar? Será que elas têm consciência do caráter das suas ações? Afinal, Elizabeth só parece, verdadeiramente, genuína quando fala na sua incapacidade de distinguir os seus sentimentos dos das suas personagens, enquanto Gracie tem um comportamento tremendamente infantil, que leva o advogado que a defendeu em tribunal, também amigo próximo da família, a afirmar que ela nunca se apercebeu das consequências daquilo fez.

A relação que se estabelece entre as duas é, mais que uma amizade, um jogo de fundo vampírico, que reduz todos os que a rodeiam a figurantes, peões num jogo que ninguém pode ganhar. Para onde quer que olhemos, há rancor, silêncio, omissão e fingimento. Nesse processo, Portman e Moore são excecionais, a primeira surpreende pela maneira como dá vida aquela figura reptiliana, na qual é impossível confiar, sempre em busca de possíveis vulnerabilidades que possa explorar, a segunda tem um dos melhores momentos da sua carreira em muitos, muitos anos, a sua Gracie parece uma criança de quase 60 anos, com uma componente de femme fatale à mistura, que baralha tudo e nos coloca na dúvida. Será ela inimputável ou vilanesca? Entende, concretamente, o peso das suas ações e, quiçá, mais importante, as consequências das mesmas? Pode Gracie ser, simultaneamente, uma vítima e uma predadora?

No entanto, o maior trunfo do filme é Charles Melton, como o adolescente que nunca conseguiu deixar de o ser, quanto mais não seja, porque a sua juventude lhe foi roubada. Melton, numa performance de invulgares nuances emocionais, nos antípodas dos papéis que o tornaram num nome reconhecível (nomeadamente, nas séries "Riverdale" e "American Horror Stories"), mantém sempre um ar empático, acentuando a tragédia que se abate sobre ele. Se Portman e Moore raramente estão enquadradas no centro do plano, sempre atiradas para um lado ou para o outro da imagem, como se fosse necessário desviar o olhar para alcançar uma visão mais precisa de quem são e do que procuram, vemo-lo sempre ali no meio, ele é, afinal, o mais frágil dos manipulados, a maior vítima de uma guerra surda entre duas rainhas que, conscientemente ou não, sacrificam os seus peões.

Haynes nunca falha, mas, até para os seus padrões, "May December" é um sucesso de deixar qualquer um boquiaberto.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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