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CRÍTICA - "DIAS PERFEITOS"


Em anos recentes, Wenders pareceu cair no esquecimento. Títulos como "Tudo Correu Bem""Os Belos Dias de Aranjuez" ou "Submersos" foram recebidos com indiferença, do público e crítica. O sucesso de "Pina" anunciou um possível "Novo Wenders", interessado em explorar as potencialidades do documentário (e não só, o alemão conta-se entre os pouquíssimos cineastas que decidiram utilizar o 3D como ferramenta, não em blockbusters, mas, em em produções de baixo orçamento), no entanto, "O Sal da Terra" e "Papa Francisco: Um Homem de Palavra", também passaram ao lado. Aliás, a decadência de Wenders junto da opinião pública motivou (ou acentuou) uma onda de revisionismo, subitamente, as pessoas que diziam que ele não assinava um bom filme desde que o Muro de Berlim caiu, começavam a colocar em causa toda a sua filmografia.

Daí que, tantos cinéfilos tenham ficado boquiabertos quando Thierry Frémaux anunciou que Cannes iria acolher não uma, mas duas novas longas-metragens de Wenders. Na competição, "Dias Perfeitos", o seu regresso ao Japão, depois de "Tokyo-Ga" (1985) e "Notebook on Cities and Clothes" (1989), nas Sessões Especiais, "Anselm", documentário em 3D sobre o pintor e escultor Anselm Kiefer. Ora, o primeiro já se encontra nas nossas salas e, como tem acontecido um pouco por todo o mundo, tem auxiliado muita gente a reconciliar-se com o cinema de Wenders.


Curioso, quanto mais não seja, porque "Dias Perfeitos" começou como uma encomenda. O produtor Koji Yanai convidou-o para ir a Tóquio conhecer e filmar as casas de banho públicas da cidade. Tinha sido criada uma nova rede de instalações sanitárias, particularmente inventiva em termos arquitetónicos, e Yanai propunha ao seu velho amigo e ex-colaborador a realização de uma série de curtas-metragens documentais. No entanto, Wenders entendeu que tinha matéria prima para uma longa e, com o auxílio do argumentista Takuma Takasaki, inventou a personagem de Hirayama (interpretado por Koji Yakusho, que reconhecemos de, pelo menos, dois clássicos contemporâneos, "A Enguia", de Shôhei Imamura, e "Cure", de Kiyoshi Kurosawa), um dos empregados que limpa os tais WC públicos.

Um pouco como "Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles" (1975), de Chantal Akerman, ou "Uma História Simples" (1999), de David Lynch"Dias Perfeitos" é deliberadamente lento e repetitivo, Wenders acompanha, pacientemente, a rotina, dir-se-ia, "monástica" de Hirayama. Durante o dia, ele é um trabalhador aplicado, garantindo a higiene dos espaços que tem a seu cargo, com admirável afinco. À noite, na solidão do seu quarto, vemo-lo a ler romances de William Faulkner ou Patricia Highsmith. Pelo meio, ouve canções de uma riquíssima coleção de músicos, incluindo Patti SmithVan MorrisonNina SimoneOtis Redding e, naturalmente, Lou Reed (o título do filme deriva do tema "Perfect Day", do álbum "Transformer", de 1972), não no Spotify, mas, no seu leitor de cassetes.


Hirayama fala pouco, aliás, Takashi (Tokio Emoto), o seu colega de trabalho preguiçoso, nos 15-20 minutos em que aparece no ecrã, é capaz de ter mais para dizer que ele. No entanto, Wenders Yakusho (é um daqueles casos onde não é possível excluir a construção da personagem do ator que a interpreta) conseguem que o entendamos na perfeição quem é aquele homem, mesmo que a sua presença seja sempre acompanhada por um certo ar de mistério (dizer mais era incorrer num imperdoável spoiler). A sua "vida dupla", à falta de um termo mais adequado, pode parecer contraditória (um elemento que ninguém se tem coibido de mencionar na hora de discutir o filme). Haverá uma inadequação natural, imediata e irreconciliável entre a experiência laboral de Hirayama e o seu fascínio pela música e literatura?

É, certamente, uma leitura válida, podemos até argumentar que "Dias Perfeitos" tem elementos que nos apontam nesse sentido, mas, consideremos, por um momento, a natureza esquemática desse olhar. Afinal, como filmadas (e limpas por Hirayama), as casas de banho de Tóquio, mesmo na sua muito básica funcionalidade, são sinais de uma ordem (social, comportamental, porque não, cívica) que caracteriza um elaborado sistema de vida. Assim, as canções (e os livros, claro) não representam uma "compensação" para as rotinas de Hirayama, antes como elementos de um modo de existir em que tudo parece confluir para uma harmonia individual fabricada no interior de uma solidão radical.

Nesse sentido, apetece dizer que, a certo ponto, "Dias Perfeitos" deixou de ser um documentário propriamente dito, mas, isso não impediu Wenders de fazer um filme que nos providencia uma radiografia, tremendamente íntima, da sociedade japonesa e, mais importante, dos cidadãos que a compõem, combinando realismo e onirismo, harmonia e melancolia, que até se lembrar de recuperar um elemento indissociável do cinema de muitos dos cineastas, europeus e asiáticos, que sempre entusiasmaram e inspiraram a filmografia de Wenders: o enaltecimento da classe operária.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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