Surpreendentemente, “Uma Vida Singular” tornou-se num dos fenómenos de bilheteira da temporada. Uma pequena produção, de raiz britânica, sem qualquer apoio da máquina promocional de Hollywood, que se tem imposto um pouco por toda a Europa.
Como? Porquê? Em boa verdade, nunca saberemos concretamente, no entanto, a vontade é sugerir que o realizador James Hawes conseguiu seduzir, em massa, um público adulto que parece andar mais dedicado a ver séries em catadupa nas plataformas de streaming do que em visitar as salas, recuperando o gosto por um cinema que se caracteriza por um classicismo humilde, que encontra no humanismo uma âncora dramatúrgica, de uma assentada, estética e ética.
Nele, regressamos aos tempos do Holocausto (um tema caro à tradição britânica em que “Uma Vida Singular” se insere), para contar a história verídica de Nicholas Winton, um jovem corretor da bolsa que, com Trevor Chadwick e Doreen Warriner do Comité Britânico para os Refugiados na Checoslováquia, resgatou 669 crianças aos nazis nos meses que antecederam a Segunda Guerra Mundial, uma operação que ficou conhecida como o Kindertransport.
Interpretado por Johnny Flynn, aos 29 anos, e Anthony Hopkins, aos 79, Winton é uma figura, no mínimo, invulgar. Um herói relutante, alguém que nunca ambicionou ser o centro das atenções e, no entanto, foi incapaz de ficar de braços cruzados quando confrontado com o sofrimento dos outros.
O temperamento modesto de Winton levou a que os seus atos só tenham começado a ser falados e reconhecidos já na reta final da sua vida, o que, como demonstrado por um Hopkins de inexcedível subtileza, não era minimamente problemático. Winton não procurava a glória, limitava-se a (tentar) corresponder aos seus padrões morais e éticos.
É nele que nos focamos durante a maioria de “Uma Vida Singular” (existem outras personagens, cuja contribuição para o Kindertransport é igualmente fundamental, mas, o filme ambiciona claramente dedicar toda a sua atenção a Winton), nas suas ambiguidades e complexidades. Nesse sentido, apetece dizer que Hawes terá encontrado uma personalidade tão fascinante que, por si só, quase lhe garante que acompanharemos o filme com um elevado nível de interesse.
Especialmente, à medida que o vamos conhecendo, a ele e ao seu trabalho na operação que resgatou 669 almas, revelando, acima de tudo, um homem dilacerado, assombrado pelos fantasmas das pessoas que não conseguiu salvar, carregando uma cruz autoimposta que pesa sobre cá um dos seus movimentos, imprimindo um elemento de dor, de sofrimento, a espaços, agonizante, às interações gentis que tem com os outros. No limite, Winton escreveu a sua própria odisseia e escolheu-se a si para encarnar o papel do herói trágico, condenado não por ego, mas por possuir um código moral que exigirá sempre só mais um bocadinho dele, consequentemente, votando-o a uma perceção de permanente, inescapável e indesculpável falhanço.
Flynn e Hopkins conseguem captar tudo isso, conseguindo uma performance dupla, mais do que interpretar Winton em diferentes etapas da sua vida, os dois fundem-se num só, compondo uma personagem que, ao longo do tempo, se vai metamorfoseando, utilizando a sua aparência de imperturbável quietude e um temperamento dócil para mascarar os fantasmas que viviam no seu âmago.
É uma história tocante, que Hawes encena de forma correta e escorreita, porventura, reconhecendo que a riqueza dos factos pedia que fossem reproduzidos o mais fielmente possível, sem floreados estéticos ou piruetas narrativas. “Uma Vida Singular” é, portanto, bom cinema de natureza clássica, comprovando que a chancela BBC, volta e meia, ainda consegue produzir um título digno do seu apogeu.
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