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Crítica: "I Love You, Daddy", de Louis C.K.



O mundo nunca mais olhará Louis C.K. da mesma maneira, depois de cinco acusações de assédio sexual. E, no processo, a sua primeira longa enquanto cineasta aparenta ter sido severamente punida nos Estados Unidos, a ponto do distribuidor local o ter abandonado “à morte”. Lamentável, em especial, quando temos em conta que “I Love You, Daddy” é um dos mais singulares acontecimentos cinematográficos do ano. Uma crónica negra e melancólica sobre um humorista que necessita de lidar com a atração que a filha menor, sente por um cineasta de quase 70 anos, sobre quem recai a suspeita de um caso de pedofilia nunca confirmado. As influências de Woody Allen (sendo “Manhattan” uma fonte de inspiração particularmente notória) serão mais ou menos óbvias e, as temáticas que se discutem (sexo, política, divórcio ou paternidade, mencionando apenas alguns), acompanhadas daquele humor tipicamente depreciativo, pertencem muito claramente aos cânones do seu criador. No entanto, aquilo nos surpreende é o “universo de contrastes” em que tudo acontece. Por um lado, o que vemos corresponde a um estereótipo de requinte e sofisticação (o preto e branco sumptuoso e classicista, as casas imponentes e luxuosas das personagens, os vestuários caros) e por outro os diálogos constantemente grosseiros, as obsessões fetichistas que vão sendo mencionadas pontualmente e, os ideais moralistas e enganadores que Glen, o nosso protagonista, carrega consigo. É uma sátira melancólica à sociedade contemporânea, pautada por fobias e inseguranças quotidianas, que C.K. tão bem expressa, toda apresentada através de um belíssimo preto e branco e com um elenco justo, que não falha uma nota e, onde é imperativo dar especial destaque a um Malkovich preciso e carismático, numa inteligentíssima variação da reputação do previamente mencionado Woody Allen.


Realização: Louis C.K.
Argumento: Louis C.K.
Género: Comédia, Drama
Duração: 123 minutos

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