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"Vendeta", de Coralie Fargeat


Auspiciosa primeira longa-metragem de Coralie Fargeat, “Vendeta”, encontra as suas raízes simbólicas numa vaga de cinema de terror francófono (“Raw” ou “Evolução”, seriam outros exemplos recentes), tão interessada em providenciar sanguinolência constante, como em passar uma mensagem sociopolítica. Neste caso, fala-se da misoginia, e do domínio sistemático que os homens aparentam exercer sobre as mulheres, nos mais variados contextos. Ou seja, uma temática importantíssima, que adquire uma relevância acrescida, num período em que proliferam movimentos como o #MeToo.


Tudo começa com uma simples viagem (como muitas vezes acontece nos melhores contos de terror). Richard (Kevin Janssens) é um empresário americano, que anualmente foge à monotonia de um casamento infeliz, para uma caçada no deserto, com dois colegas de trabalho gauleses, Stanley (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède). No entanto, este ano, Richard escolheu partir dois dias mais cedo, para a casa que ali possui, de modo a passar algum tempo com a amante, Jennifer (Matilda Lutz), que os seus parceiros “nunca deviam conhecer” (palavras do próprio, em jeito de mau augúrio). Acontece que os mesmos, também optaram por antecipar a sua viagem, criando um ambiente de notória inveja. Todos desejam Jennifer, mas apenas Richard pode tê-la. Só que, enquanto Dimitri se limita a observar o que por ali se passa, Stanley desenvolve uma perigosa obsessão pela rapariga, que o leva mesmo a aproveitar a breve ausência de Richard para a violar.


É o momento fundamental do filme, que desencadeia a brutal cadeia de acontecimentos que se seguem, e desmonta as ilusões que nos são entregues na primeira metade. O olhar da câmara sobre o corpo de Jennifer deixa de ser erotizado, e os comentários gulosos do trio, assumem contornos insidiosos. Por conseguinte, também o tom muda radicalmente, da relativa ligeireza da inicial, para a intensidade implacável de um western no deserto (pensemos num “Mad Max: Estrada da Fúria” em versão minimalista), encenado com uma admirável sensibilidade operática (o confronto final de tão alucinatório torna-se hipnótico), e um cuidado estético francamente incomum (raramente vemos filmes tão maravilhosamente belos). Afinal, no limite, poderíamos mesmo argumentar que tudo se resume a um requintado conto moral, acerca das consequências do machismo descontrolado e do egoísmo dilacerante, situado num território desencantado, onde o calor nos consome, e o sangue voa tão livremente como a poeira.


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