"Ana, Meu Amor", de Călin Peter Netzer
A entrada no século XXI, marcou
também a exposição mais ou menos massificada de duas cinematografias europeias,
que tradicionalmente tinham pouca expressão no estrangeiro. Ambas conseguiram
mesmo conquistar o direito a uma outra presença e visibilidade nos festivais e
mercados internacionais, arrebatando até alguns prémios importantes. Posto
isto, coincidentemente ou não, ambas parecem funcionar como um contraponto
perfeito da outra. A primeira ambicionou desmontar normas sociais, com base num
surrealismo francamente satírico, mas, eternamente desencantado. A segunda
excluiu quaisquer artifícios estéticos ou narrativos, e abraçou um realismo
austero e contundente. E, porque é mesmo acerca dos filmes romenos que temos
podido ver, que nos debruçamos hoje, digamos que esse é um olhar que conhecemos
desde obras valorosas como “A Morte do Sr. Lazarescu” ou “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, e que voltamos a encontrar em “Ana, Meu Amor”, quarta longa-metragem
de Călin Peter Netzer (conhecíamo-lo do extraordinário “Mãe e Filho”), que
poderíamos descrever como um conto profundamente romanesco, em torno dos muitos
paradoxos e contradições dos laços humanos.
Tudo começa com um simples
encontro. Toma (Mircea Postelnicu) e Ana (Diana Cavallioti), conversam acerca
de Friedrich Nietzsche, e dos equívocos mais comuns na sua literatura. Estão
claramente no princípio de uma relação amorosa, como demonstram as tentativas
incessantes de se seduzirem um ao outro, com as suas observações sobre a obra
do filósofo alemão. No entanto, a rapariga vai ficando inquieta, e juntamente
com ela, a câmara à mão, sempre colada ao rosto dos protagonistas, começa a
evidenciar um crescente nervosismo na maneira como passa de um para o outro.
Essa ansiedade acaba por descambar num ataque de pânico, que leva Ana a correr
para os comprimidos que tem guardados na sua bolsa. Quase sem nos apercebermos,
Călin Peter Netzer concebeu nestes minutos iniciais, um pequeno resumo do que
veremos a seguir. Ana é demasiado obsessiva, depressiva ou meramente ansiosa,
para levar uma vida “normal”, e Toma ama-a perdidamente, apesar de nunca a
conseguir entender. Segue-a para todos os recantos sombrios onde se esconde,
discute com os próprios pais quando a rejeitam, e torna-se em tudo aquilo de
que ele precisa. Aparentemente, é Toma quem controla a relação (e, talvez, ele
aprecie essa dependência mais do que admite), contudo, o mesmo limita-se a
gravitar à volta daquela mulher, estando disposto a alienar tudo e todos (até
mesmo a embarcar numa espiral autodestrutiva) para garantir a estabilidade da
sua amada.
Com
um pano de fundo muito marcado pelas componentes católicas da sociedade romena
contemporânea (não faltam subtis alusões políticas), e pela psicanálise, “Ana, Meu Amor” é, no entanto, tudo menos um mero exercício
intelectual. Pelo contrário, ao investir numa abordagem puramente sensorial,
Peter Netzer coloca-nos na pele de ambos os protagonistas, a sentir o pavor que
assombra constantemente Ana, e o amor perverso que Toma sente por ela. Assim, todo o filme se transforma num elaboradíssimo jogo de rostos e gestos, onde ninguém
diz o que sente, por não conseguir explica-lo, e como nos sentimos a habitar a
mente dos dois, também nós somos incapazes de encontrar as palavras
necessárias. Talvez, por isso, os instantes finais (propositadamente abruptos)
sejam tão perturbantes, pois sugerem que o amor é apenas e só um martírio sem
fim, do qual não há (não pode haver) escapatória possível. A nova vaga romena
ainda não nos desiludiu, que continue assim.
Realização: Călin Peter Netzer
Argumento: Cãlin Peter Netzer, Cezar Paul-Badescu, Iulia Lumânare
Elenco: Mircea Postelnicu, Diana Cavallioti, Adrian Titieni
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