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"Árctico", de Joe Penna


O mínimo que se pode dizer acerca da primeira longa-metragem do brasileiro Joe Penna é que se trata de um notável exercício minimalista. Afinal, não é de todo comum encontramos títulos que se predisponham a correr riscos tão ousados. Como assim? Pois bem, em “Árctico” somos convidados a acompanhar o quotidiano rotineiro e desgastante de um homem (Mads Mikkelsen) cujo helicóptero se despenhou algures no Círculo Polar Árctico. Inicialmente, Penna encena o todo como um olhar quase documental em torno da condição deste ser aprisionado numa espécie de purgatório terreno. No entanto, a narrativa altera-se consideravelmente quando um segundo avião se despenha naquela zona, deixando uma única sobrevivente (Maria Thelma Smáradóttir) quase totalmente paralisada e incapaz de comunicar com o protagonista, que aí assume uma nova faceta: a de um protector.

O argumento nunca nos providencia quaisquer informações adicionais acerca dos destinos individuais dos dois sobreviventes que seguimos por entre o deserto gelado. Isto é, nunca saberemos quem são, de onde vêm e para onde iam. A nítida falta de diálogos explicativos, encoraja a nossa aproximação a cada um dos acontecimentos presentes, na tentativa de decifrar o que se esconde por detrás da mais ínfima expressão facial de Mikkelsen, que carrega o filme às costas, tornando-se numa exemplificação literal da fragilidade humana, à medida que vamos vendo o seu corpo a ser reduzido a um mero ponto num infindável oceano branco de neve e a tentar batalhar o vendaval uivante, quase invisível, devido às condições atmosféricas.


Pontuado por um trabalho admirável do compositor Joseph Trapanese (a fazer lembrar o seu contemporâneo Max Richter) e captado pela lente do director de fotografia Tómas Örn Tómasson (a conseguir algumas imagens absolutamente majestosas, como um plano de cortar o fôlego em que contemplamos o gigantesco sinal de S.O.S. que o protagonista esculpiu no gelo), “Árctico” é um peculiar e apaixonante objeto capaz de conjugar o espírito clássico do cinema de aventuras com uma inesperada dimensão poética, convertendo o todo numa parábola sobre o combate, dir-se-ia, eterno entre o Homem e a Natureza e também numa história contundente e comovente sobre a persistência do altruísmo em circunstâncias extremas.

Num panorama contemporâneo, onde o cinema vem sendo asfixiado pela omnipresença de produções vazias de conteúdo e interesse, também elas aprisionadas a uma condição de permanente endeusamento das novas tecnologias (veja-se o recente e lamentável caso do abismal “Godzilla II: O Rei dos Monstros), apetece-nos mesmo dizer que é bom encontrar alguém que ainda seja capaz de reconhecer a importância da dimensão humana, especialmente, numa narrativa que se pretende verdadeiramente “épica”.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Arctic”
Realização: Joe Penna
Argumento: Joe Penna, Ryan Morrison
Elenco: Mads Mikkelsen, Maria Thelma Smáradóttir, Tintrinai Thikhasuk
Duração: 98 minutos
Distribuição: Cinema BOLD

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