Avançar para o conteúdo principal
"Yesterday", de Danny Boyle


Quem tiver um conhecimento mínimo do atual panorama do cinema britânico, encarará com alguma estranheza a união entre Danny Boyle e Richard Curtis. O primeiro, um descendente direto de compatriotas seus como Nicolas Roeg (1948-2018) ou Ken Russell (1927-2011), conhecido pela maneira como convoca elementos do cinema de género (pensemos nos fantasmas de “O Exorcista” que pairam sob o seu “Trainspotting”), para se interrogar acerca da condição humana. O segundo, um romântico incurável, cujas ideias já salvaram a comédia britânica em tempos de crise (são seus os guiões de “Quatro Casamentos e Um Funeral”, “Notting Hill” e “O Amor Acontece”). Assim sendo, que conceito seria sedutor o suficiente para conseguir juntar estes dois “titãs”? Pois bem, nada mais, nada menos, que a história de um cantautor falhado (Himesh Patel), que sobrevive a um atropelamento, só para acordar numa dimensão paralela, onde os Beatles nunca existiram. Decide, então, começar a cantar o emblemático catálogo dos quatro de Liverpool como se a autoria do mesmo lhe pertencesse, mas o sucesso que lhe vão trazer terá consequências inesperadamente amargas…

Boyle, convenhamos, já concebeu objetos infinitamente mais interessantes (a título de exemplo, mencionemos apenas “Pequenos Crimes Entre Amigos” e “28 Dias Depois”), no entanto, o britânico continua a conseguir trazer uma agilidade e frescura muito próprias ao argumento de Curtis que, além de ser uma homenagem comovente ao legado dos Beatles (podendo também, eventualmente, funcionar como uma porta de entrada no seu universo musical para alguns espetadores), encontra no seu conceito francamente sugestivo muitas e boas ideias cómicas que existem em perfeita comunhão com as canções que vão surgindo frequentemente na narrativa. Para o sucesso de tamanho empreendimento, contribui também a revelação absoluta que é o protagonista Himesh Patel, dando vida a clássicos como “Let it Be” ou “Yesterday” de forma muito pessoal, e apresentando um timing cómico impecável (as cenas que partilha com Joel Fry, no papel do seu melhor amigo e roadie, serão as que melhor representam a energia do guião de Curtis). Claro está, que esperávamos mais de Boyle, contudo, diga-se que este “Yesterday” faz um bom par com um dos seus filmes mais obscuros, “Milhões” (2004), evidenciando que além de ser o autor subversivo que tanto amamos, o cineasta inglês parece também ter algum talento na hora de conceber feel good movies charmosos e irresistíveis.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Yesterday”
Realização: Danny Boyle
Argumento: Richard Curtis
Elenco: Himesh Patel, Lily James, Joel Fry, Kate McKinnon, Ed Sheeran
Duração: 116 minutos
Distribuição: NOS Audiovisuais

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)