"Blinded by the Light: O Poder da Música", de Gurinder Chada
Há um momento em "Blinded by the Light" que sintetiza todo o filme. Acontece quando o protagonista, Javed (Viveik Kalra), ouve “Dancing in the Dark”, pela primeira vez. A esse ponto já entendemos que o protagonista encara o “Boss” como um Deus, no entanto, Gurinder Chada apercebe-se que essa devoção nos foi comunicada, mas nunca ilustrada. Então, durante aqueles breves minutos, contemplamos a face do rapaz, à medida que aquilo que vê e ouve transfigura a sua expressão. Podíamos dizer que as imagens e sons o cativaram, excitaram ou lhe despertaram o interesse, contudo, qualquer um desses termos seria demasiado redutor. Porquê? Pois bem, porque nessa sequência crucial como nenhuma outra, vemo-lo a reconhecer-se noutra pessoa, evocando esse sentimento muito de juvenil de deparar com algo ou alguém (tanto podemos estar a falar acerca de um cantor como de um filme ou peça de teatro) em que se revê totalmente. Foi essa sensação que a música de Bruce Springsteen providenciou ao jornalista Sarfraz Manzoor, cuja a autobiografia, “Greetings From Bury Park: Race. Religion. Rock'n'Roll”, serve de base para “Blinded by the Light: O Poder da Música” (um daqueles subtítulos redundantes e ranhosos que os portugueses tanto gostam).
Situado nos anos 80, na pequena cidade de Luton, no Reino Unido, “Blinded” começa por acompanhar as dificuldades financeiras da família de Javed. O país entrou em recessão económica, os despedimentos abundam, Margaret Thatcher ainda não abandonou o poder, o nacionalismo está a crescer e com ele o número de crimes de ódio. O pai de Javed (Kulvinder Ghir) trabalha numa fábrica nas redondezas e a mãe (Meera Ganatra) é uma costureira. Ambos possuem expectativas particularmente grandes do filho, que esconde deles a sua ambição de ser escritor, bem como outros aspetos da sua personalidade. Os dois não lhe permitem uma vida social, uma namorada ou independência (a certo ponto o pai comunica-lhe a seguinte mensagem: “os paquistaneses não vão a festas”, só para ser atingido com uma contundente resposta: “pensava que era britânico”). Fora da nada funcional unidade familiar, há Matt (Dean-Charles Chapman), o melhor amigo de Javed e líder de uma banda New Wave, para quem vai compondo algumas letras, sentindo-se sempre frustrado e aprisionado a uma condição ingrata.
Nestes minutos inicias, o nome de Bruce Springsteen nunca é sequer mencionado. Afinal, os adolescentes preferem ouvir os hits do momento. Seja Madonna, os Pet Shop Boys, Michael Jackson ou Tiffany. Springsteen era um nome do passado que pouca ou nenhuma influência exercia na cena pop contemporânea. Mas, essa situação alterou-se quando o mundo chegou a 1984 e o “Boss” lançou “Born in the USA”, onde verbalizava a melancolia e desencanto que via em seu torno devido à pobreza crescente e ao desaparecimento da classe média. Um dia, um colega Sikh chamado Roops (Aaron Phagura) apercebe-se do desespero de Javed e passa-lhe umas cassetes de Springsteen, insistindo que somente elas o podem ajudar. É aí que Javed ouve “Dancing in the Dark”, e tem um momento revelatório, refletido no mundo exterior por via de uma tempestade que vai desencadeando estragos no seu bairro (“A Grande Tempestade” de 1987). É como se fossem os temas de Bruce a causar esse cenário quase apocalíptico. Depois, enquanto Javed descobre The Promised Land”, Chada começa a encenar o todo como um delirante jukebox musical (isto é, um musical sem músicas originais), as letras do “Boss” voam em torno do protagonis ta, são projetadas em paredes e edifícios. Javed nunca soube que poderia existir música a falar de maneira tão direta e honesta com ele, muito mesmo que a mesma fosse feita por um homem americano de New Jersey.
À semelhança de Roops, Javed torna-se um evangelista de Bruce, vestindo-se como ele, apropriando-se da rádio da escola e preenchendo as suas paredes com posters do herói que sintetiza todos os seus problemas e fobias. É uma premissa um tanto ou quanto atípica e, consequentemente, fascinante que Chada transforma numa comovente e não raras vezes hilariante história de superação, com um pano de fundo sociopolitico conturbado que lhe providencia uma contemporaneadade inesperada. Afinal, esta não é só a aventura de um jovem paquistanês com um gosto por Springsteen, é também um olhar desencantado sobre um mundo que vai testemunhando a ascenção dos nacionalismos e a marginalização constante e incessante das minorias étnicas...
Texto de Miguel Anjos
Realização: Gurinder Chadha
Argumento: Paul Mayeda Berges, Gurinder Chadha, Sarfraz Manzoor
Elenco: Viveik Kalra, Aaron Phagura, Nell Williams
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