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"Scary Stories to Tell in the Dark" ("Histórias Assustadoras para Contar no Escuro"), de André Øvredal


Nos primeiros instantes da quarta longa-metragem de André Øvredal, a voz de uma criança diz-nos que as histórias conseguem magoar os seus leitores ou auxilia-los a esquecer ou curar feridas antigas. “Elas fazem de nós quem somos”, argumenta. Escusado será dizer, que essa crença se alinha perfeitamente com o cinema do norueguês, sempre preocupado em desenhar paralelos entre elementos realistas e facilmente reconhecíveis no nosso quotidiano, e os mitos mais antigos e insidiosos, sejam eles descendentes de rituais religiosos ou de superstições há muito enraizadas no tecido cultural de uma qualquer região. Nesta perspetiva, “Histórias Assustadoras Para Contar no Escuro” assume-se como um sucessor digno de “O Caçador de Trolls” (2010) e “A Autópsia de Jane Doe” (2016), prosseguindo o seu trabalho de redescoberta dos prazeres da fábula, entendida enquanto um processo regressivo que nos conduz a um tempo simbólico em que a mente humana e os seus fantasmas coexistem de modo perverso.


Desta feita, estamos numa pequena comunidade no interior dos EUA, em 1968. A Guerra do Vietname (1955-1975) ia longe do fim e as suas repercussões sentiam-se por toda a sociedade, quando um trio de amigos composto por Stella (Zoe Margaret Colletti), Auggie (Gabriel Rush) e Chuck (Austin Zajur) convencem um forasteiro, que todos os restantes membros da cidade parecem desdenhar devido à sua herança latina, de nome Rámon (Michael Garza) a juntar-se a eles numa peregrinação de Halloween até uma mansão recôndita e decadente, onde terão tido lugar acontecimentos francamente macabros. No entanto, sem saberem acordam um mal antigo que se manifesta por via de um livro escrito a sangue, que penetra a psique das suas vítimas, lê os seus pensamentos e obriga-as a enfrentar os seus piores medos em cenários dantescos e controlados única e exclusivamente por um demónio que impede os seus alvos de subverter as suas narrativas. Isto é, à semelhança das velhas tragédias gregas, não é possível escapar aos desígnios dos Deuses, por mais cruéis que possam ser.


As componentes sobrenaturais da narrativa são encenadas com brilhantismo e graciosidade, apresentando situações consistentemente perturbadoras e intrigantes, no entanto, o que impressiona é a maneira como o argumento de Dan Hangeman, Kevin Hangeman e Guillermo del Toro (também a exercer funções de produtor) se interessa pelo quarteto central de personagens, entendendo que o restante filme nunca funcionaria caso o público não estivesse investido nos seus destinos individuais. Assim, ficamos mesmo a conhecer Stella (e o seu gosto cinematográfico, que cobre maioritariamente a produção de série B dos anos 50 e 60), Auggie, Chuck e Rámon, cujas interações com os outros parecem sempre ser pautadas por distintas manifestações de preconceito, entre as suas cenas e o impacto muito óbvio que a frágil situação política que se vivia nos EUA (a ensanguentada sombra da Guerra do Vietname está sempre à espreita) exerce na narrativa, o filme de Øvredal rapidamente revela o jogo e admite que além de assustar (e garantimos que algumas das rocambolescas criaturas roubarão o sono aos espetadores mais sensíveis) quer pintar o fresco sobre as inquietações de uma América à deriva. Que o faça utilizando o comovente e hilariante contexto de uma crónica de amigos é apenas uma outra razão para o admirarmos. Uma das boas surpresas do verão.

Texto de Miguel Anjos

Realização: André Øvredal
Argumento: Dan Hageman, Kevin Hageman, Guillermo del Toro
Elenco: Zoe Margaret Colletti, Michael Garza, Gabriel Rush, Austin Zajur, Dean Norris, Gil Bellows, Austin Abrams, Natalie Ganzhorn, Lorraine Toussaint, Kathleen Pollard
Duração: 111 minutos
Género: Terror
País: EUA | Canadá
Distribuidor: NOS Audiovisuais

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