"En Liberté!" ("Em Liberdade"), de Pierre Salvadori
Vivemos no tempo das franquias. Quase semanalmente deparamos com uma sequela, remake ou reinvenção de personagens e cenários que nos são familiares e, por isso, mais fáceis de vender. Do ruidoso “Velocidade Furiosa: Hobbs e Shaw” ao penoso “Rei Leão”, quem entrar num multiplex contemporâneo e atirar uma pedra ao ar ou acerta na cabeça de um pobre empregado desprevenido ou num standee a anunciar uma enésima variação sobre o mesmo conceito base. Como tal, é especialmente refrescante tropeçar numa experiência cinematográfica tão enriquecedora e fascinante como “Em Liberdade!”, a nona longa-metragem do cineasta italiano radicado em França, Pierre Salvadori, de quem apenas conhecíamos algumas simpáticas comédias de enganos como “Faça Favor…” (2033) ou “Uma Doce Mentira” (2010). Um daqueles acontecimentos que apenas podemos descrever como “inclassificáveis".
Os primeiros minutos trazem à mente um certo cinema de Hollywood, colocando um destemido agente da polícia francesa a invadir um apartamento repleto de criminosos sanguinários. Teoricamente, ninguém sobreviveria a um cenário assim tão dantesco, mas Santi (Vincent Elbaz) não é um homem como outro qualquer e os seus elaborados conhecimentos no campo da pancadaria permitem-lhe abandonar a situação ileso. Na verdade, esta cena é imaginada na mente de uma jovem criança, que ouve atentamente as muitas aventuras do pai falecido da boca da mãe, Yvonne (Adèle Haenel), também ela pertencente às forças policiais. Sem nos apercebermos disso, Salvadori apresenta-nos logo ao peculiar clima burlesco que o filme vai assumir nesse momento, deixando no ar que no mundo em que os acontecimentos de “Em Liberdade!” decorrem a tragédia e a comédia andam de mãos dadas e o caos é permanente e sempre hilariante.
Acontece que, na sequência de uma aparatosa rusga a uma casa de sadomasoquistas, Yvonne descobre que Santi era corrupto e que o estilo de vida a que a habituou tinha fundamentos criminosos francamente repelentes. Sentindo-se traída e desesperada, Yvonne parte em busca de Antoine (Pio Marmaï), um homem casado com Agnès (Audrey Tautou), que foi libertado da prisão após passar 8 anos detido injustamente, acusado de um crime perpetrado pelo vil Santi. A viúva ambiciona apenas encontrar uma maneira de o auxiliar, apercebendo-se que só assim conseguirá limpar a sua consciência, mas Antoine também já não é o mesmo. Quem, outrora, fora uma pessoa honesta, trabalhadora e carinhosa é agora um anarca que quer obedecer a todos os seus impulsos animalescos, de modo a cometer os crimes pelos quais já pagou. Citando-o: “Estou farto de ser inocente…”
O argumento escrito a seis mãos por Salvadori, Benjamin Charbit e Benoît Graffin abandona todos e quaisquer lugares comuns da comédia gaulesa atual, abraçando assumidamente u ma vertente surpreendentemente burlesca, que não sacrifica (antes intensifica) a veia romanesca da história, explorando temas como a culpa, injustiça, paternidade e a relação perversa entre as expectativas e a realidade, sempre com o foco na intimidade e drama de uma mulher que descobre que vive aprisionada a uma mentira que propagou ao filho, enganando-o noite após noite com os contos de heroísmo, protagonizados pelo pai, que à medida que o filme avança vão ficando mais desencantados e negros, como se se tivesse tornado impossível manter a mentira.
Um conjunto de peças que o cineasta vai juntando com mestria e precisão num cocktail explosivo que é dos mais belos OVNIs que as salas de cinema nacionais acolheram nos últimos tempos. Uma coisa é certa, “Em Liberdade!” não se parece com nada que tenhamos visto antes (Quentin Dupieux e alguns títulos de Jean-Luc Godard seriam as únicas comparações vagamente possíveis, mas ambas seriam algo enganadoras), e num panorama de repetição e reciclagem apenas isso já valeria o preço do bilhete. Trata-se de uma obra genuinamente diferente, estimulante e comovente como poucas, que no seu realismo mágico meio alucinado nos leva ao céu pelo excesso do pecado. Isto, já para não mencionar um suculento subenredo envolvendo um serial killer arrependido que necessita de ser visto… E não dizemos mais nada.
Texto de Miguel Anjos
Realização: Pierre Salvadori
Argumento: Pierre Salvadori, Benjamin Charbit, Benoît Graffin
Elenco: Adèle Haenel, Pio Marmaï, Audrey Tautou, Damien Bonnard, Vincent Elbaz
Duração: 108 minutos
Género: Comédia, Drama
País: França
Distribuidor: Films4You
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