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"Ready or Not: O Ritual", de Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gillette


Tornou-se comum ouvir gente argumentar que o dinheiro é a raiz de todo o mal. No entanto, Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, membros do coletivo Radio Silence (os senhores responsáveis por “Nascido das Trevas” e pelo segmento "10/31/98" na antologia “VHS”), propõem uma reversão desse mesmo raciocínio. Isto é, no universo perverso de “Ready or Not: O Ritual” é o mal quem encontra as suas raízes no dinheiro. Como assim? Pois bem, na opinião do duo o poderio monetário advém da necessidade do homem de assumir uma posição dominante sobre os seus congéneres. De subjugar os outros e encurralá-los na condição inescapável de cidadãos de segunda. O filme adquire, portanto, contornos de crítica social que acabam por funcionar como enquadramento para este conto sobre pressões económicas, masculinidade tóxica e assassinatos sanguinolentos, que Bettinelli-Olpin e Gillett surpreendem ao encenar num contagiante registo de comédia desvairada.


Começamos mesmo o filme com uma gargalhada. “Estás pronta para isto”, pergunta o noivo à sua futura esposa. “Não, fodasse”, responde ela sem filtros. Acontece que, nesses minutos iniciais nem ela entende o quão correta está a sua observação. É que Grace (Samara Weaving) vai casar com Alex Le Domas (Mark O'Brien), proveniente de uma família de bilionários, conhecidos pelo seu trabalho na área dos jogos de tabuleiro. No entanto, desconhece que os mesmos têm uma tradição antiga reservada para a noite de núpcias. Essencialmente, necessita de jogar às escondidas na opulenta mansão dos novos familiares. A princípio, acha que é apenas uma excentricidade e que deve alinhar na brincadeira para não criar má imagem junto dos Le Domas. Contudo, depressa se dá conta que estes querem sacrificá-la para conseguirem manter a sua riqueza (não explicaremos porquê, porque “Ready or Not” fá-lo melhor que nós). Sozinha e em perigo num território que não conhece, apercebe-se que necessita de aceder aos seus instintos mais primitivos para sobreviver à noite.


Bettinelli-Olpin e Gillette trabalham no seu ritmo de sempre (quem conhecer o trabalho dos Radio Silence não estranhará as escolhas atípicas da narrativa), circunscrevendo os acontecimentos aos canónicos 90 minutos, sem nunca apressar nada. A fórmula é simples (mas, nem por isso menos excitante): introduzir as personagens em situações suficientemente íntimas para que possam ilucidar-nos subtilmente acerca das suas nuances, e imediatamente a seguir atirá-las para um jogo demente, onde o humor negro e a carnificina descerebrada caminham de mãos dadas. Contudo, ao contrário de obras anteriores do coletivo, aqui nada é gratuito e todos os elementos servem para compor um retrato acutilante de um sistema social em que os obscenamente ricos fazem as suas fortunas à custa dos restantes. Na ótica de Bettinelli-Olpin e Gillette, talvez, possamos argumentar que o capitalismo não passa de uma doença parasitica que privilegia uns e castiga outros, garantindo unicamente que os abusadores continuam a poder subjugar os subjugados, consoante as suas falhas morais e impulsos sádicos o ditem. Nesse sentido, "Ready or Not: O Ritual" tem o seu quê daqueles filmes de série B dos anos 80, que utilizavam um formalismo irrepreensível e uma premissa adequadamente delirante para expressar um olhar crítico e muito desencantado sobre o panorama sociopolitico.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Ready or Not”
Realização: Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gillett
Argumento: Guy Busick, Ryan Murphy
Elenco: Samara Weaving, Adam Brody, Mark O'Brien, Henry Czerny, Andie MacDowell, Melanie Scrofano, Kristian Bruun, Nicky Guadagni, Elyse Levesque

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