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"A Cor da Ambição"

(Giuseppe Capotondi, 2019)


Os tempos áureos do noir encontram-se no passado, portanto, entende-se que quando um realizador contemporâneo tenta produzir um filme nessa tradição, o faça num registo de homenagem. Nada contra. Afinal, à custa dessa exaltação dos valores de modelos de produção “extintos” já se fez excelente cinema. No entanto, de vez em quando, é bom que alguém demonstre interesse e capacidade para subverter códigos previamente estabelecidos e, no processo, providenciar-nos experiências que se distingam pela maneira como desafiam as nossas certezas. É o caso de A Cor da Ambição, do italiano Giuseppe Capotondi. A enigmática história de um crítico de arte caído em desgraça (Claes Bang) que pensa ter encontrado uma maneira de fugir à sua condição quando um colecionador ganancioso (Mick Jagger) lhe faz uma proposta irrecusável. Pelo meio, há uma possível femme fatale (Elizabeth Debicki) e um artista que vive num regime de inclusão autoimposto (Donald Sutherland) que, de uma maneira ou outra, vão forçar o protagonista a questionar-se acerca do seu carácter numa situação que lentamente se vai tornando doentia. Belissimamente interpretado por um estupendo quarteto de atores e apoiado no argumento deveras eloquente de Scott B. Smith, A Cor da Ambição evidencia-se como um thriller de recorte superior, que reinventa uma premissa tipicamente policial como um baile de máscaras, onde ninguém consegue criar uma conexão genuína com o outro, sem necessitar de recorrer à mentira. Acima de tudo, o filme de Capotondi é um jogo de indagação íntima que lança uma pergunta tão simples quanto insólita: num mundo em que a moral não importa, para que serve a verdade?

Texto de Miguel Anjos

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