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Burden: A Redenção (Andrew Heckler, 2018)


Se Mike Burden não existisse e o argumentista e realizador Andrew Heckler o tivesse inventado, ninguém acreditaria. No entanto, Mike Burden foi mesmo um membro fervoroso do Ku Klux Klan (KKK) que abandonou a organização devido ao amor de uma boa mulher, eventualmente desenvolvendo uma aliança com um padre afro-americano, que outrora quase assassinou. Parece exatamente o tipo de história de superação que só acontece mesmo no cinema, mas já dizia o povo que a realidade consegue sempre ser mais estranha que a ficção.

Heckler, um ator que desde o começo do século tentava convencer possíveis financiadores a apoiarem esta sua incursão pela realização, presenteia-nos com um conto acutilante acerca dos horrores do racismo sistémico. Uma odisseia de redenção, que evita respostas fáceis e sentimentalismos sensacionalistas. No papel de Burden, Garrett Hedlund é simplesmente assombroso, evidenciando-se como um intérprete capaz de expor as nuances mais delicadas do comportamento humano. Já se entregaram estatuetas douradas por menos.


Em 1966, um bando de homens procuraram transformar um cinema há muito encerrado num novo negócio. O objetivo é fortalecer o comércio na cidade provinciana de Laurens na Carolina do Sul. Heckler começa Burden: A Redenção com os trabalhadores a meio do processo de construção. Que estabelecimento tentam erguer? A infame Redneck Shop. Um bastião do preconceito, que começou como um museu do KKK, complementado pela venda de souvenires racistas e acabou como um ponto de encontro para supremacistas brancos.

Desde o início que Heckler tenta encontrar as zonas cinzentas nesta história, procurando resquícios de humanidade em personagens desprezíveis. Veja-se o momento arrepiante em que uma churrascada se transforma numa manifestação do KKK, onde nem faltam cruzes a arder e capuzes brancos. Assim é o quotidiano perverso de Burden. Uma realidade em que até os acontecimentos mais banais podem assumir contornos sinistros. Essa é a sua noção de normalidade. Afinal, ele nunca conheceu uma vida que não envolvesse os ritos do KKK.


A postura negligente e natureza silenciosa de Mike oculta vários segredos, como uma propensão para breves explosões de violência ou a posição cimeira que ocupa na hierarquia do Klan, que ele pensa ser a única família que o pode amar. O argumento de Andrew Heckler vai providenciando informações importantes acerca do passado do seu protagonista ao espetador, como os abusos que sofreu às mãos do pai ou o tempo que passou no exército, contudo, o filme não desculpa as ações de Mike. Ele é mau e a sua conduta é tudo menos aceitável.

Entretanto, também em Laurens, conhecemos o Reverendo David Kennedy (Forest Whitaker). Um homem de família dedicado à sua fé, que vive de acordo com um compromisso perpétuo para com a moralidade. Ele tenta sempre escolher o caminho correto, mesmo que isso o condene a enfrentar dificuldades. Para ele, combater injustiças não é somente uma missão, é um dever cívico. Acima de tudo, é um idealista que pensa que a redenção se encontra ao alcance de qualquer um. Heckler apresenta-nos, portanto, dois indivíduos em trajetos opostos.


Acima de tudo, Burden: A Redenção é um olhar contundente sobre a forma como o amor pode condicionar tudo aquilo que fazemos e até mesmo manipular as nossas convicções morais. Há um sentimento genuíno de afeição entre Mike e a sua família adotiva no KKK e tudo nos indica que é isso que o incentiva a permanecer no coletivo, mais que qualquer ideologia política. Da mesma forma, que existe verdadeiro amor na relação que Mike vai criar com uma mãe solteira chamada Judy (Andrea Riseborough), depois de se apaixonar durante um biscate.

Ironicamente ou não, é a mesma ânsia por amor que levou Mike a emaranhar-se nas malhas da escuridão que o vai convencer a procurar a luz. Nesse processo, Hedlund espanta com uma performance brilhante, mas importa também mencionar a graciosidade com que Riseborough utiliza gestos simples para comunicar emoções complexas e a melancolia que pesa sob os ombros de um Whitaker solene e contido como nunca antes. Aliás, todo o elenco apresenta uma consistência impressionante que oferece à obra um naturalismo sereno e pungente.


O cinema americano contemporâneo pouco ou nenhum interesse tem evidenciado em falar acerca da vida de quem vive no interior, porventura, porque isso implicaria comentar certas divisões políticas e sociais que não são fáceis de conciliar. Contudo, Heckler não teme, e embora Burden: A Redenção nunca tente perdoar as atitudes daquela comunidade rural, vemo-lo mesmo a estender empatia aos moradores de Laurens. Como diz o Reverendo, “disseram-lhes que só importava nascerem brancos, só que depois percebem que são uns miseráveis, sem dinheiro, nem educação.” No fundo, também eles são vítimas de uma sociedade capitalista que não tem interesse nenhum neles, levando-os a sucumbir a um compasso moral avariado.

Num período particularmente problemático na sua existência, onde voltaram a tornar-se comuns os debates sobre as desigualdades extremas que ainda predominam no espaço social, os Estados Unidos encontram num filme como Burden: A Redenção, uma reflexão fundamental sobre as convulsões que continuam a impactar o seu crescimento enquanto nação. Todavia, não é apenas cinema para americano ver, histórias comoventes com vontade e capacidade para falar sobre temas que continuam relevantes são ou deviam ser do interesse de todos.

A PRIS Audiovisuais estreou Burden: A Redenção a 9 de Julho nos cinemas portugueses.

Texto de Miguel Anjos

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