Existe um problema na maneira como a literatura clássica retrata as suas personagens femininas. Raramente lhes é providenciado algum controlo sob o seu destino e há mesmo demasiados casos em que as vemos serem reduzidas a meros adereços na jornada do herói. Não é, por isso, incomum encontrar releituras modernas dessas obras, que desafiam o público contemporâneo a conhecer outras perspetivas sobre contos que conhecemos previamente. Em 2009, Seth Grahame-Smith fê-lo ao adicionar mortos-vivos esfomeados ao Orgulho e Preconceito de Jane Austin. A sua visão imaginava as mulheres como guerreiras e não espetadoras passivas, contudo, não só apresentava um tom satírico que não queria ser levado a sério, como mantinha intactos quase todos os aspetos do texto de origem. Continuávamos a acompanhar o romance de Elizabeth Bennett e Mr. Darcy, ainda que houvessem mais membros mutilados que antigamente. No entanto, isso não acontece em Ofélia, a fantástica reinvenção do Hamlet, de William Shakespeare, que a cineasta irlandesa Claire McCarthy construiu a partir do romance homónimo de Lisa Klein. Encontramo-nos perante uma proposta subversiva, que reconhece a peça do Bardo, enquanto remete os seus acontecimentos às sombras. Essa escolha proporciona uma oportunidade única para moldar uma história de poder e convicção à volta de uma personagem que tem sido abusada e negligenciada desde o século XVI. Nas mãos de McCarthy, da coargumentista Semi Chellas e da atriz Daisy Ridley, Ofélia vai assumir a forma de um manifesto fílmico que seduz muito. Politicamente utópico? Porventura, mas que nos convence que o destino pode ser reescrito por uns momentos fugazes convence…
Texto de Miguel Anjos
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