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"MANUAL DA BOA ESPOSA", DE MARTIN PROVOST


Toda a existência de Martin Provost é  moldada pelo seu fascínio pela condição feminina. Desde os discussões violentas que o conduziram a abandonar a casa dos pais e, mais especificamente, a figura dominadora do progenitor, até aos projetos que tem escolhido enquanto cineasta. De "Le Ventre de Juliette" (2003) ao novo "Manual da Boa Esposa" (2020), passando por "Séraphine" (2008) e "Violette" (2013), todas as suas longas-metragens têm enquanto ponto comum uma dedicação extrema ao retrato da maneira como os usos e costumes têm marcado a forma como a sociedade francesa vê as mulheres e, consequentemente, as condiciona a representar determinados papéis.

Em "MANUAL DA BOA ESPOSA", encontramo-nos em 1967, na Alsácia, onde vive e trabalha Paulette van Der Beck (Juliette Binoche), a reitora da conceituada Escola de Gestão Doméstica de Bitche. Lá foram "formadas" muitas jovens para se converterem em boas donas de casa, mães exemplares e, claro, excelentes companheiras para os seus queridos maridos. Tudo aparenta correr idilicamente até Robert (François Berléand), marido de Paulette e dono da instituição em causa, morrer subitamente. No entanto, sem que a esposa soubesse, Robert afundou-se em dívidas relacionadas com apostas em corridas de cavalos, levando Paulette a descobrir da pior maneira (e, escusado será dizê-lo, no momento mais inoportuno) que a escola está à beira da ruína. É o momento de aceitar o auxílio da cunhada Gilberte (Yolande Moreau) e da freira Marie-Thérèse (Noémie Lvovsky) e partir em busca de uma forma de evitar o abismo financeiro. Contudo, a adversidade levará  Paulette a enfrentar fantasmas do passado e a repensar as ideologias sob as quais construiu uma existência e um império. Entretanto, os ventos de mudança sentem-se por toda a nação, enquanto nas rádios e jornais se fala numa revolução eminente...

De facto, a sombra do chamado Maio de 68 paira sobre os acontecimentos como um fantasma que se recusa a desaparecer e Provost é o primeiro a explicar porquê. Como nos diz um breve texto introdutório, os protestos vão atirar o país para um processo de metamorfose irreversível, que não só contribuiu para o acelerar dos movimentos de emancipação femininos, como para esbater um pouco as fronteiras entre a cidade e a província, daí a escolha de um cenário rural, permitindo-nos vislumbrar um universo completamente retrógrado, onde as próprias mulheres são as primeiras a propagar os estereótipos ofensivos e francamente ridículos que lhes foram incutidos no passado.

Nas mãos de outro realizador, é possível que "Manual da Boa Esposa" fosse movido por uma indignação inquestionavelmente justificada. Não obstante, Provost prefere apoiar-se nas matrizes de uma comédia de usos e costumes (bem à francesa), onde a provocação é sempre bem-vinda. Estabelecendo entre as personagens um diálogo que espelha os muitos outros que certamente decorriam por toda a França, sem nunca abdicar de um espírito festivo e bem-humorado, que tanto reconhece a importância do labor dos atores, como o património do próprio cinema francófono, colecionando aqui e ali pequenos piscares de olho a autores tão díspares como Jean-Luc Godard (ele que "anteviu" os eventos do Maio de 68 no emblemático "Fim-de-Semana") ou Jacques Demy (autor máximo do musical contemporâneo, que também nunca ocultou o seu interesse pelo feminino). Se há filme que capaz de desenhar um sorriso no rosto até do mais carrancudo dos espetadores, tem mesmo de ser este.

Texto de Miguel Anjos

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