Avançar para o conteúdo principal

 "Nomadland: Sobreviver na América", de Chloé Zhao


“Indomável” (2010), “Django Libertado” (2012), “O Mascarilha” (2013), “Mil e Uma Maneiras de Bater as Botas” (2014), “Os Oito Odiados” (2015), “As Armas de Jane” (2015), “Os Sete Magníficos” (2016), “Terra Violenta” (2016), “Os Irmãos Sisters” (2018)… Hollywood continua a tentar reanimar os chamados westerns. Os resultados têm oscilado entre o revisionismo e o revivalismo. Entre quem pretende desconstruir intelectualmente a simplicidade reconfortante das aventuras dos bons contra os maus, assumindo o património de violência, colonialismo e xenofobia que os cowboys de antanho nos deixaram, e quem apenas ambiciona reconstituí-las, macaqueando os sucessos dos anos 40-60 sem providenciar nenhum tipo de leitura crítica sobre os seus conteúdos. Não pretendendo demonizar nenhum dos campos, parece-me oportuno mencionar que esse ímpeto simultaneamente cinéfilo e mercantil coincidiu com uma certa urbanização do cinema americano, cujo fascínio por locais ditos “rurais” se reduziu ao estatuto de um souvenir, por isso, se tornou tão comum ver a imprensa a usar termos como “América esquecida” quando os blocos informativos nos levam para fora dos centros metropolitanos.

Nesse sentido, é legitimo perguntar quem herdou o Oeste? Que indivíduos continuaram a percorrer os seus caminhos poeirentos, quando os pistoleiros solitários encontraram amparo nos quadradinhos das bandas-desenhadas ou nas páginas dos romances de cordel? O cinema da sino-americana Chloé Zhao não tem feito outra coisa senão providenciar-nos respostas surpreendentemente realistas e pouco usuais. As suas primeiras longas-metragens, "Songs My Brothers Thaught Me" (2015) e "The Rider" (2017), acompanhavam o quotidiano dos membros da tribo Lakota Sioux na Reserva de Pine Ridge, a meio a caminho entre o documental e o transcendente, iluminando recantos do país (e do mundo) que costumam ser ignorados em bloco pelo mundo em redor. Em "Nomadland", o foco passa das comunidades nativas para os nómadas norte-americanos, uma (contra)cultura que apenas tem vindo a crescer em anos recentes.

Tudo começa com uma notícia que parece saída de um filme de ficção-científica. Em janeiro de 2011, a fábrica US Gypsum de Empire, no Nevada, anunciou o seu encerramento, como todos os habitantes da localidade trabalhavam ou dependiam de quem lá trabalhava, foram forçados a abandonar as suas casas em massa. Passados seis meses, a cidade encontrava-se vazia (assim permanece atualmente) e o seu código-postal era extinto. Entre os muitos que chamavam a Empire "casa", encontrava-se Fern (Frances McDormand), uma viúva de 60 anos, que resolve vender todas as suas posses e fazer-se à estrada numa autocaravana, sobrevivendo de biscate em biscate, contando com o auxilio e generosidade dos que se encontram na mesma situação que ela.

Zhao abandona completamente quaisquer pretensões narrativas convencionais, concebendo um filme mais próximo do documentário, onde vamos acompanhado o quotidiano de Fern num registo de contundente realismo. "Nomadland" não romantiza nenhum elemento do estilo de vida destas personagens. Aliás, como menciona uma senhora a certo ponto, "isto é tudo muito bonito, mas quando se é nómada temos de aprender a tratar da nossa merda. Literalmente." Dado este estado das coisas, é possível que o leitor conclua que nos encontramos perante um olhar cruel e impiedoso sobre as vítimas da natureza indiferente do capitalismo, e se essa é mesmo uma componente deste retrato, importa realçar que, à semelhança de Fern, Zhao nunca se resigna nem ao miserabilismo, nem ao simplismo de um panfleto político, abrindo-se à beleza que muitos nómadas reconhecem nas suas vidas (são mesmo eles quem o diz frequentemente).

Essa "abertura" afasta "Nomadland" dos seus trejeitos documentais e aproxima-o de um cinema existencialista mais abstrato que objetivo. Pensamos em Terrence Malick, por exemplo, quando a câmara de Joshua James Richards (diretor de fotografia conhecido por uma capacidade inata de achar uma beleza quase mística em espaços rurais) se cola às deambulações de Fern por aqueles prados, aparentemente longínquos, que se vã desvanecendo num horizonte incógnito. Posto isto, esses momentos não têm nada de turístico ou ornamental, são, isso sim, instantes de uma beleza fugaz que nos permitem contactar com o que de mais íntimo aquelas pessoas têm. Daí que aquilo que nos fica na memória são elementos supostamente comuns, conversas breves, refeições partilhadas e olhares trocados. Zhao providencia um cunho metafísico ao "banal", estabelecendo uma contemplação que nunca se aproxima sequer do voyeurismo.

Uma última nota para um elenco irrepreensível, onde encontramos apenas dois atores profissionais, David Strathairn e Frances McDormand, a abdicarem de qualquer imagem glamorosa que possamos associar à indústria que muitos conhecem como "Fábrica dos Sonhos". Os céticos dirão que a docuficção é hoje um género consolidado (até dentro de uma cinematografia tão pequena como a nossa) e que nada disto é minimamente inovador, mas Zhao não quer reinventar a roda, apenas encontrar uma linguagem que lhe permite falar de (e com) pessoas cujas vozes são sistematicamente abafadas. Se "Nomadland" é ou não o Melhor Filme de 2020 não podemos assegurar, quanto mais não seja por ainda não conhecermos muitos dos outros títulos de que muito se fala ("Mais Uma Rodada", "Uma Miúda Com Potencial", "Minari", etc.), mas não negamos que nos sentimos a levitar na cadeira da sala de cinema, enquanto percorremos a imensidão do oeste americano com Frances McDormand e todos os extraordinários (não)atores que a circundavam.

Por tudo isto e mais, saia de casa, vá ao cinema e siga o velho conselho dos Pet Shop Boys: "Go West".

Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)