Quando pensávamos que Paul Verhoeven se tinha reformado definitivamente, o realizador holandês reapareceu... em França. O filme chamava-se "Ela", beneficiava de uma performance indescritivelmente brilhante de Isabelle Huppert e era um retrato bizarro e perturbante do nosso tecido social, contagiado por desconcertantes toques de humor. Não sabíamos, mas era o início de um novo capítulo na filmografia de Verhoeven, o seu período francófono.
"Benedetta" é o prolongamento desse mesmo período, recuperando a temática de empoderamento feminino desse filme e substituindo a frieza que pautava "Ela" com um erotismo atordoante que não é estranho ao trabalho do holandês.
Itália, final do século XVII. Desde muito nova que Benedetta Carlini (Virginie Efira) possui o dom de fazer milagres, e quando se muda para um convento em Pescia, na Toscana, isso tem um enorme impacto na comunidade. Entretanto, acolhe Bartolomea (Daphne Patakia), uma jovem que lhe implora abrigo e proteção, e as duas tornam-se muito próximas, crescendo entre elas um romance ardente que coloca em causa os cânones da Igreja...
À semelhança daquilo que já ocorrera muitas vezes com outros filmes de Verhoeven, o lançamento de "Benedetta" tem dividido crítica e público entre o maravilhamento e o mais puro choque, onde uns veem uma sensual e divertida sátira, outros encontram um espetáculo escandaloso e, correndo o risco de alienar uma parte do público, tenho que me alinhar com o primeiro grupo.
No entanto, argumentaria mesmo (como muitos outros o têm feito) que "Benedetta" se encontra bem longe de qualquer entendimento de um filme banalmente erótico, claro está, que essa componente está lá, até porque Verhoeven sempre se demonstrou como um cineasta e individuo bastante descomplexado, com interesse em discutir temáticas relacionadas com o desejo em contextos, porventura, atípicos, contudo, "Benedetta" é, acima de tudo, uma olhar satírico deveras contundente, que utiliza o erotismo e o humor como ferramentas para dissecar a dor, paranoia, poder e hipocrisia, traçando um retrato cru e desencantado da Igreja, não necessariamente enquanto instituição dedicada ao culto de uma divindade seja ela qual for, mas como um ninho de víboras, habitado por quem não tem problemas em manipular a fé para conquistar poder.
Enquanto centro desta desconstrução irónica, encontramos uma extraordinária Virginie Efira, ela que conhecíamos quase unicamente como cara de muitas comédias populares que cá têm chegado (citemos apenas os exemplos de "Aluga-se Família" e "Um Homem à Altura") a reinventar-se, com uma performance simultaneamente enigmática e translucida, a sua "Benedetta" é o oposto daquilo que as personagens femininas em contextos religiosos costumam ser (uma líder, cuja vulnerabilidade não impede de arranjar sempre maneira de assumir o controlo), aqui muito bem secundada por um elenco que conjuga veteranos como Charlotte Rampling, com aquela que é, por certo, uma das grandes revelações do ano: Daphne Patakia.
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Texto de Miguel Anjos
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